Álvaro Bianchi
Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas e secretário de redação da Revista Outubro.
Desde que Lenin escreveu o Que Fazer?, em 1902, tornou-se um lugar comum afirmar que o jornal de uma organização revolucionária deve ser um “organizador coletivo”. Mas, na verdade, o jornal é muito mais do que um orga-nizador... E Lenin sabia disso. Um exame da citação de Por onde começar?, o texto que antecede Que fazer? no debate, deixa isso evidente. Para Lenin “O jornal não é apenas um propagandista coletivo e um agitador coletivo. Ele é, também, um organizador coletivo. Neste último sentido pode ser comparado com os andaimes que são levantados ao redor de um edifício em construção, que assinala seus contornos, facilitam as relações entre os diferentes pedrei-ros, ajudam-lhes a distribuírem as tarefas e a observar os resultados gerais alcançados pelo trabalho organizado”[1]. Ou seja, ele não é só um agitador, não é só um propagandista, não é só um organizador. Ele é tudo isso.
Dois eram os alvos da polêmica de Lenin: o economicismo e os métodos artesanais. A crítica às tendências economicistas no interior da social-democracia russa ocuparam as páginas centrais de sua obra Que fazer? Tais tendências economicistas destacavam unicamente a luta econômica de resis-tência – a “luta pelos interesses imediatos e cotidianos” – como gostavam de dizer. Para Lenin, “a social-democracia dirige a luta da classe operária não a-penas para conseguir melhores condições para a venda da força de trabalho, e sim para destruir o regime social que obriga os despossuídos a vender-se aos ricos”. Daí que os social-democratas “não possam nem admitir que a organização de denúncias econômicas constitua sua atividade predominan-te.”[2]
O caráter revolucionário de um movimento não se define unicamente, ao contrário do que os economicistas poderiam afirmar, pelos métodos de luta, mas se constrói sobre o eixo teoria-movimento. A crítica ao economicismo é, neste ponto, também uma intervenção no Bernstein-debate. À conhecida afir-mação do dirigente da social-democracia alemão – “para mim o que geralmen-te se chama fins últimos do socialismo é nada, mas o movimento é tudo”[3] –Lênin contrapõe: “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”.
Sobre isso, a observação de Rosa Luxemburg a respeito do oportunismo é exemplar: “Qual a sua principal característica, exteriormente? A hostilidade à ‘teoria’. E é muito natural, pois nossa ‘teoria’, isto é, os princípios do socialismo científico impõem à atividade prática limites muito precisos, tanto no que diz respeito às finalidades que se têm em mira, como aos meios a empregar para atingi-las, como também ao próprio método de luta. Daí o esforço natural dos que buscam somente resultados práticos imediatos para libertar-se, isto é, se-parar nossa prática da ‘teoria’, tornar uma independente da outra.”[4]
A crítica dos métodos primitivos na organização do partido, dirigem-se, por sua vez, contra a ausência de “um planejamento sistemático, bem medita-do e preparado pouco a pouco, de uma luta longa e tenaz” que dificultavam a unidade nacional da organização.[5]
Tratava-se, para Lenin, de superar a fase inicial de construção empírica do partido e avançar em sua implantação social por meio de um planejamento racional que identificasse as necessidades do movimento, por um lado, e os recursos disponíveis pelo partido. Para a superação do economicismo e do primitivismo era essencial a criação de um “órgão central” de propaganda, agi-tação e organização.
Funcionando como um verdadeiro intelectual coletivo, o jornal do partido criaria as condições para uma prática política verdadeiramente revolucionária. O “órgão central do partido” apresentava-se assim como uma resposta política aos problemas organizativos e aos desafios teóricos, colo-cando-se no centro de uma malha de publicações locais e nacionais que difundiriam a política partidária.
A trajetória da imprensa bolchevique
A imprensa dos bolcheviques passou por diferentes fases e nem sempre sua motivação principal era a organização partidária strictu sensu. Grosso modo podemos distinguir cinco períodos da imprensa bolchevique, todos eles demarcados pela situação concreta da luta de classes e da organização do partido: 1) o momento da organização, até 1904, quando é criado o Vperiod; 2) o momento da agitação, até a derrotada revolução em 1907; 3) o momento da propaganda, até 1912, quando é lançado o Pravda; 4) o momento da agitação política, que durará até a revolução de 1917; e 5) o período posterior, no qual a ênfase recai na construção do socialismo.
Até 1903, a função principal da imprensa bolchevique era aglutinar os revolucionários em torno de uma política e de uma organização. Foi o período de unificação dos círculos social-democratas. Nesse momento, o jornal era o instrumento em torno do qual se unificavam os círculos. O público ao qual o jornal se dirigia era o dos militantes. Foi, também, o período do Iskra. Lenin, durante essa etapa, insistiu muito no papel do jornal como organizador político da social-democracia. E foi por isso que a disputa sobre diferentes concepções organizativas se expressa na formação do conselho editorial do Iskra. Na ver-dade, o tal conselho era, de fato, a própria direção do Partido Operário Social-Democrata da Rússia.
O ascenso revolucionário a partir de 1903 abriu uma nova fase para a imprensa bolchevique: a fase da agitação. O papel central da imprensa não era a organização e centralização dos bolcheviques e sim para a agitação política, com vistas à tomada do poder. A derrota da revolução e o grande refluxo vivido pelo movimento operário russo balizam a terceira etapa da imprensa bolchevique. Foi a fase da propaganda, marcada de forma emblemática pela retirada ao exílio da redação do Proletari, em 1907. Não foi um retorno, entretanto, aos anos anteriores a 1903. Os bolcheviques já tinham acumulado uma importante coluna de quadros e conquistado uma ampla audiência entre a classe operária. O público da imprensa bolchevique já não era mais interno.
A partir de 1910 o movimento operário russo retomou seu ímpeto. Lênin, em 1904, por ocasião do lançamento do Vperiod tinha se oposto a um jornal de massas, mas a nova situação do proletariado russo o convencera de que era chegada a hora. Os bolcheviques, juntamente com alguns mencheviques, a-companharam esse movimento da classe operária com a criação de Svesdá e, posteriormente, de Nievskaia Svesdá. Em janeiro de 1912, o Svesdá, que era semanal, passou a ser bissemanal e, em março, três vezes por semana. De-pois de uma campanha que durou vários meses, os bolcheviques lançaram seu primeiro jornal diário no final de abril de 1912, o Pravda. Quarenta dias depois, a circulação do Pravda era proibida, voltando a aparecer com o nome de Rabotchaia Pravda, do qual saíram 17 edições. O novo jornal teve o mesmo destino, sendo substituído sucessivamente pelo Svernaïa Pravda, durante 31 números; Pravda Truda, 20 edições; Za Pravku, 51; Proletarskaïa Pravda, por 16; Put Pravdy, que saiu 91 vezes antes de ser mais uma vez censurado pela autocracia kizarista.[6]
Organizando pouco antes da guerra uma rede de correspondentes ope-rários, que funcionavam como elos no partido e antenas capazes de captar o estado de ânimo da classe, o Pravda e os jornais que o sucederam difundiam as experiências da luta operária criando as bases para a formação de uma i-dentidade coletiva. Em um único ano, esses correspondentes publicaram 11.114 “informes” dando vida ao jornal e despertando a repressão das autori-dades. De um total de 270 edições, 110 foram objeto de ações judiciais, as multas de 7.800 rublos era um montante duas vezes superior ao recolhido na campanha de lançamento e seus redatores foram condenados a um total de 472 meses de prisão.[7]
A repressão política sobre os bolcheviques tornou-se mais intensa a partir do início da guerra em 1914, restringindo enormemente o alcance de sua imprensa. Até meados de 1916 prevaleceu a dispersão dos militantes e uma vida partidária desarticulada. Com a intensificação da crise política decorrente da participação da Rússia na guerra, os bolcheviques foram reconstruindo as bases de sua organização e retomando a agitação política realizada por meio de sua imprensa. Foi essa agitação o que colocou os bolcheviques em uma posição privilegiada na revolução de Fevereiro de 1917. A luta pelo poder e a agitação política ocuparam grande parte das páginas dos jornais das organiza-ções bolcheviques. Lenin assumiu pessoalmente, em 5 de abril de 1917, a di-reção do novo Pravda, dois dias após desembarcar na Estação Finlandesa de Petrogrado. E foi nas páginas desse jornal que Lenin lutou pela reorientação política dos bolcheviques.
A imprensa bolchevique não perdeu sua função com a chegada ao po-der. No novo período, aberto depois de Outubro de 1917, ela passou a difundir e defender as tarefas colocadas pela construção do novo Estado operário, or-ganizando a classe para tal. Durante esse período, a organização da produção é um dos temas mais freqüentes na imprensa. Os debates desenvolvidos em torno da Nova Política Econômica e da industrialização encheram as páginas dos jornais. A imprensa destinada aos camponeses passou a veicular, junto com os temas da política nacional e internacional, artigos técnicos aconselhando formas de aumentar a produção, a melhor época do ano para plantar e colher os diversos cultivos, etc.
Os correspondentes operários
Ao longo desses diferentes momentos, a imprensa bolchevique procurou sempre se adaptar à situação concreta. Os bolcheviques nunca fizeram um jornal dedicado exclusivamente à agitação, à propaganda, à organização partidária ou à organização da produção. O que existia, na verdade, era a combinação particular das diferentes ênfases, de acordo com os momentos vividos. Por isso, do ponto de vista da concepção leninista de imprensa, é insuficiente dizer que o jornal é o “organizador coletivo”. Ele é o organizador coletivo, mas é também “nosso melhor propagandista e agitador, o propagandista dirigente da revolução proletária”, como assinala a resolução do 3º Congresso da Internacional Comunista.
O caráter flexível da imprensa bolchevique tinha, entretanto, um elemento invariável, sua relação com o partido. A forma como a imprensa partidária consegue estabelecer esta estreita relação, estes laços indissolúveis, é através dos correspondentes. Quando das discussões para o lançamento do Vperiod, o jornal ilegal dos bolcheviques publicado entre dezembro de 1904 e maio de 1905, Lenin enfatizava: “Devemos ter o maior número possível de trabalhadores do partido correspondendo-se conosco, correspondendo-se no sentido habitual e não jornalístico do termo”. A concep-ção de Lenin enfatizava o papel dos correspondentes operários: “É um equívoco considerar que escritores e apenas eles (no sentido profissional do termo) possam contribuir plenamente para uma publicação; pelo contrário, ela será vívida e viável apenas se para cada cinco jornalistas que o dirijam e escrevam de forma regular, existam 500 ou 5 mil colaboradores que não sejam escritores”.[8] Por essa razão, manifestou sua insatisfação quando a redação do Vperiod não conseguiu cumprir essa meta: “Por que vocês não nos colocam em contato direto com os trabalhadores? Nem um único trabalhador escreve para o Vperiod. Isso é um escândalo. Precisamos a todo custo de dúzias de correspondentes operários.”[9]
Essa idéia fundamental de Lenin seria retomada pelas resoluções do 3º Congresso da Internacional Comunista: “Não é suficiente ser um agitador e um recrutador zeloso para o jornal, é preciso também se transformar em colaborador útil. É preciso informar o mais rápido possível tudo o que mereça ser observado, do ponto de vista social e econômico, na fração sindical e nos núcleos, do acidente de trabalho à reunião profissional, dos maus-tratos dispensados aos jovens aprendizes até o relatório comercial da empresa.”[10]
Era com base na prática dos correspondentes e em suas informações que o jornal do partido tornava-se parte do próprio movimento de massas exer-cendo sua dupla função educativa. Internamente, educava os militantes do partido nas tarefas de agitação, propaganda e organização. Externamente, apresentava-se como elemento constitutivo de uma nova concepção de mundo que tomava como ponto de partida a particularidade da vida operária para generalizá-la sob a forma de luta de classes
[1] V. I. Lenin. Where to Begin? Collected Works. Moscou: Foreign Languages Publishing House, 1961, v. 5, p. 17.
[2] V. I. Lenin. Que hacer? Moscou: Progreso, 1981, p. 64.
[3] Cf. p. ex, Eduard Bernstein. Socialismo evolucionário. Rio de Janeiro: Jorge Zahr/Instituto Teotônio Vilela, 1997, p.147.
[4] Rosa Luxemburgo. Reforma ou revolução? São Paulo: Elipse, s/d, p. 67.
[5] V. I. Lenin. Que hacer? Op. cit., p. 112.
[6] Pierre Broué. El Partido Bolchevique. Madri: Ayuso, 1973, p. 64.
[7] Pierre Broué. Op. Cit, p. 70.
[8] V. I. Lenin. A letter to the comrades (with reference to the forthcoming publi-cation of the organ of the Party majority). Collected works. Moscow: Progress, v. 7, p. 523-528.
[9] V. I. Lenin. The secretary of the Majority Committees' Bureau. January 29, 1905. Collected works. Moscou: Progress, v. 34, p. 307.
[10] A III Internacional Comunista. Teses e resoluções do III Congresso. São Paulo: Brasil Debates, 1989, v. 3, p. 139.
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