Ao ocuparem quatro prédios no centro de São Paulo no fim de 2010, os sem-teto que lutam por moradia digna se aproximam de seu maior desejo: trocar o isolamento da periferia por uma região privilegiada da metrópole. A desapropriação de 53 prédios do centro pode significar o fim dos frequentes despejos
por Danilo Mekari
Vinte quilômetros de muita capital separam o número 925 da Avenida Ipiranga, no centro de São Paulo, da rua Henrique Perdigão, localizada no bairro de Cidade Líder, na zona leste. A distância, porém, pode ser percorrida de duas maneiras: não se trata de carros, ônibus ou Metrô, mas de sentimentos como esperança e frustração, que se alternam de acordo com o ponto final do trajeto. Fátima Gomes de Oliveira é prova disso.
Quando seu caminho, assim como de centenas de outros sem-teto paulistanos, foi de ida ao centro – especificamente para a Avenida Ipiranga, no edifício recém-ocupado pelo movimento por moradia –, havia a compreensão de que aquele deslocamento poderia significar mudanças estruturais em suas vidas; entretanto, a inevitável reintegração de posse e o retorno à favela desmoronam grande parte destas expectativas. Mas não todas.
No Jardim Ipanema, a rua Henrique Perdigão é uma das vias que cercam a ocupação Eletropaulo, que desde 2002 tornou-se destino para quem fosse despejado de outras ocupações próximas. Por isso, a favela já conta com 700 famílias que, além das parcas condições de habitação e saneamento, têm de conviver com torres de eletricidade da empresa que dá nome ao local. Quando venta e chove, o perigo aumenta; as torres emitem zunidos de alta potência, impedindo o sono dos moradores – isso quando as goteiras não encharcam suas habitações, além do perigo de um desmoronamento quase iminente.
A família de dona Fátima, 55, já montou dois barracos na área. O primeiro veio abaixo após “uma chuva que nem era forte” – na mesma noite, um mutirão de colegas ajudou-a a levantar o segundo. Mas não tem jeito: “aqui chove mais dentro do que fora”, suspira Daniela, sua filha, enquanto a mãe não para de tossir; quando o faz, porém, não pode beber muita água. “É tudo por causa do chagas, essa doença que eu tenho”, revela. A doença de chagas, transmitida por insetos, é uma infecção que, entre muitos sintomas, enfraquece os batimentos cardíacos; o excesso de água faria com que o rim se sobrecarregasse na função de expeli-la, também forçando o coração a bater mais rápido. Dona Fátima logo retoma: “meu barraquinho ta caindo, tenho o maior medo”.
Mesmo as luzes de Natal não aliviam o incômodo da situação. Os móveis da família estão empilhados na cama de casal, sustentada por diversas caixas de plástico. Além de outros barracos, Fátima tem como vizinho um esgoto e um pequeno morro. O medo de deslizamento não a deixa dormir, e desabafa: “tenho certeza que esqueceram a gente daqui”.
O chaguismo, porém, não foi suficiente para impedir dona Fátima de participar da recente ocupação do prédio 925 da Avenida Ipiranga, no coração de São Paulo, e lutar por melhores condições de moradia. Orgulhosa de ter se instalado o primeiro andar do edifício, ela não se contém: “Quer me ver no jornal?”. Com cuidado, desdobra a página em que aparece sua foto sob a manchete “Sem-teto invadem prédios do centro”. “Era bom morar na cidade. Queria ter ficado lá”, lamenta.
Apesar do retorno à favela, dona Fátima saiu vitoriosa da ocupação: sua família receberá da Prefeitura de São Paulo uma bolsa-auxílio de R$300 por mês para o aluguel de uma nova moradia. “Minha menina viu uma casinha hoje cedo, mas vamos ter que mudar as crianças de escola, pois não é muito perto daqui”. A ajuda financeira será entregue durante 30 meses; após esse período, existe a possibilidade da sua família ter uma moradia definitiva através do programa federal Minha Casa Minha Vida – segundo a Associação dos Moradores do Jardim Ipanema, há um projeto sendo avaliado na Cidade Líder que abrigaria 160 famílias de baixa renda.
Desapropriando o centro
As últimas ocupações no centro de São Paulo aconteceram no dia 4 de outubro de 2010, quando quatro prédios ociosos foram tomados por sem-teto de uma série de movimentos pela moradia. Não apenas vazios, os edifícios ocupados acumulam dívidas de anos de IPTU (Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana) não pagos: o número 340 da rua Mauá ignora o imposto desde 1974, com R$ 1,5 milhão de débito, enquanto na Avenida Prestes Maia, 911, o saldo negativo chega a R$ 4 milhões. O prédio do INSS, na Avenida 9 de Julho, deve 400 mil para seus concessionários (Sabesp e Eletropaulo).
No edifício da Avenida Ipiranga, mais de 1200 pessoas preenchiam a ocupação, que teve reintegração de posse no fim de novembro. Os sem-teto também se reintegraram e, despejados, montaram um acampamento em frente à Câmara dos Vereadores para continuar pressionando o poder público para cumprir as desapropriações. Por fim, 111 famílias serão beneficiadas com o auxílio-moradia.
“Para quem vive numa favela lá no fim do mundo, esse dinheiro [auxílio-moradia] é uma vitória. Tem que comemorar e lutar pra não chegar ao fim desse período de 30 meses sem nada na mão. É tão grande o esmagamento, a desigualdade e a segregação que conseguir isso já é uma vitória. E, recentemente, nós não estamos comemorando muitas vitórias”, argumenta Ermínia Maricato, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e secretária de Habitação de São Paulo na gestão Erundina (1989-1992). Ela acredita que as próximas mudanças só acontecerão se o movimento pela moradia não se acomodar com tais medidas paliativas. “Eles não teriam essas vitórias se não tivessem força. Essa mudança não vem se não houver luta social – não falo só da luta de quem não tem moradia, mas também dos urbanistas e dos ambientalistas”.
O atual secretário de Habitação da prefeitura paulistana, Ricardo Pereira Leite, crê que as ocupações não são o melhor jeito para a resolução do problema. “A gente não faz acordo com quem ocupa prédio que nós estamos desapropriando, pois consideramos isso nocivo à política habitacional”.
Resultados do último Censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revelam que, em São Paulo, existem 290.317 moradias não-ocupadas, equivalente a 7,4% do total de domicílios da capital; desse montante, é difícil precisar a quantidade de prédios que estão inteiramente desocupados. Atualmente, está em vigor um projeto de desapropriação de 53 edifícios ociosos no centro da cidade, resultando num total de 2500 unidades, que seriam destinadas à habitação de interesse social.
Mas o secretário lembra que há entraves a serem superados: “a maioria dos prédios que estamos desapropriando são das décadas de 1940 e 50. Hoje, eles pertencem a três espólios diferentes. A complexidade jurídica é enorme”. Além disso, existem os problemas estritamente físicos dos edifícios, que na maioria eram comerciais (sem banheiro e sem acesso a veículos) e hotéis. “Os projetos serão todos adaptados para preservar ao máximo a tipologia atual”, diz Ricardo.
Segundo Ermínia, “os pobres não cabem na cidade legal, e eles não são minoria. Isso é uma coisa que não se fala: sobre a escala da ilegalidade à que é relegada a população de baixa renda – não é pouca gente. No município de São Paulo, quase um quarto da população mora ilegalmente”. Por isso, ela ressalta que a desapropriação dos prédios no centro não vai resolver o problema, mas acredita no lado simbólico da ação: “isso está apontando para outras possibilidades”.
O centro ainda distante
Na favela Eletropaulo, não foi só dona Fátima que fez e refez o itinerário “zona leste/centro” durante as ocupações. Enquanto arruma as trancinhas coloridas no cabelo escuro, Elizabete relembra como foi difícil manter os seis filhos no prédio da Ipiranga. “Todas as crianças faltaram na escola, mas não tinha jeito, imagina levar e buscar todo o dia?”, questiona. “Elas vão ficar de recuperação”, mas mesmo assim Elizabete não se arrepende – seus filhos também estiveram no acampamento em frente à Câmara. No rádio, escolhe a música Vida Loka (parte II), dos Racionais MC’s (“sempre quis um lugar / gramado e limpo, assim verde como o mar / cercas brancas, uma seringueira com balança / desbicando pipa, cercado de criança”), e explica que vai assinar o contrato do auxílio-moradia nos próximos dias; a expectativa é grande. “A luz acaba toda hora. Já ficamos dois meses sem água. Sabe o que é abrir a torneira e não cair um pingo d’água?”.
A radiação gerada pelas torres de eletricidade da Eletropaulo é outro fator que complica a situação da favela – o risco de câncer é elevado, principalmente para quem mora ao lado delas. É o caso de Joana Darc, que divide um barraco com seus dois filhos e algumas partes da torre. “Arrumaram esse lugar de última hora, voltando de uma ocupação despejada”, revela. Joana não pôde participar das últimas ações dos sem-teto no centro, mas garante que estará nas próximas “sem falta, para ter a chance de conseguir o aluguel”. Para Elenita, sua vizinha, também só falta assinar o contrato de auxílio-aluguel; suas filhas, que também estiveram na ocupação, agora brincam no varal improvisado dentro da torre elétrica.
Mas o desejo de habitar o centro da cidade ainda está distante. As famílias da favela auxiliadas pela prefeitura procuram moradias próximas de onde moram, devido ao baixo valor do aluguel que poderão pagar. “Um dos méritos desse movimento pela moradia que ocupou o centro é justamente querer morar no centro, onde se encontra a melhor situação de acessibilidade e mobilidade da região metropolitana”, argumenta Ermínia. Segundo o secretário de Habitação, os edifícios desapropriados serão destinados às faixas de renda de zero a dez salários mínimos e também para a terceira idade. “As faixas de renda menor (zero a três salários mínimos), que não conseguem comprar a moradia, provavelmente serão atendidas com programas de locação social. As faixas de renda mais alta vão comprar de acordo com o valor de avaliação”, diz Ricardo.
Enquanto os moradores da favela Eletropaulo dividem barracos com água de chuva e torres de eletricidade, o prédio que foi ocupado da Avenida Ipiranga continua às moscas – os 20 quilômetros sempre os separarão do centro da cidade. Apenas a manutenção da luta pela moradia digna pode aproximá-los, aos poucos, do seu desejado destino. O primeiro passo já foi dado, e dona Fátima garante: “vou te convidar pra tomar um café na minha nova casa”.
Quem sabe no primeiro andar do número 925 da Avenida Ipiranga?
Danilo Mekari
é jornalista e integra a equipe do Le Monde Diplomatique Brasil
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