Por Lúcia Rodrigues
A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que responsabilizou o Estado brasileiro pelo desaparecimento de 70 guerrilheiros do Araguaia, joga por terra a sentença do Supremo Tribunal Federal (STF), de 29 de abril de 2010, que impediu a revisão da Lei de Anistia e a consequente punição dos militares envolvidos na violação de direitos humanos durante a ditadura.
Essa é a primeira vez que o Brasil é condenado internacionalmente por crimes cometidos pela ditadura militar. A decisão da OEA não se restringe, no entanto, apenas a responsabilização dos militares envolvidos no desaparecimento forçado, na tortura e morte dos guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PC do B), que pegaram em armas na região do Araguaia entre os anos de 1972 e 1974. Com a medida, todos os militares que se envolveram em casos de violação de direitos humanos na ditadura poderão ser punidos.
Para a vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Vitória Grabois, a sentença internacional traz um alento para as famílias dos mortos e desaparecidos políticos. “O Brasil é um país atrasado na questão dos direitos humanos. Esperamos que o governo cumpra a decisão da Corte”, frisa a militante de direitos humanos que teve o pai, Mauricio Grabois, o irmão, André Grabois, e o companheiro, Gilberto Olímpio, assassinados pelos militares no Araguaia. Vitória não se conforma com o fato de o governo do presidente Lula ter colocado um general para coordenar as investigações do caso Araguaia.
“Todos os governos civis escamotearam essa questão (militar). Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique e Lula. Os dois últimos com mais gravidade. Fernando Henrique porque foi exilado político e Lula porque liderou jornadas de luta operária e foi preso político”, critica o ex-candidato ao governo do Estado de São Paulo pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), Igor Grabois, filho de Vitória e Gilberto Olímpio.
Igor também não esconde a insatisfação com a decisão da presidente Dilma Rousseff em manter o ministro Nelson Jobim à frente da pasta da Defesa. “A Dilma é uma vítima da ditadura, foi presa política, torturada, mas já começa (o governo) com um mau sinal ao nomear o general da banda Jobim, para ministro da Defesa.” O dirigente comunista afirma sentir vergonha pelo fato de o Brasil ainda não ter conseguido passar a história a limpo. “Um país que se orgulha de ser a maior democracia dos países emergentes, não resolve uma questão que se arrasta há mais de 40 anos”, enfatiza.
A Corte Interamericana também foi clara em relação à abertura dos arquivos. Segundo o texto, o Estado brasileiro deve garantir o acesso às informações sobre o período ditatorial. “Temos um fator a mais para fazer diminuir o medo que os nossos governantes têm dos militares”, ressalta Criméia Almeida, representante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo. Ela perdeu o companheiro André Grabois e o sogro, Maurício, no Araguaia.
“O principal perigo é a manutenção dos agentes da ditadura nos órgãos públicos até hoje. Os generais de hoje eram os tenentes que nos torturavam, que nos punham no pau-de-arara”, ressalta. Criméia também é enfática ao exigir a punição dos militares envolvidos em violações de direitos humanos. “Esperamos que essa ação contra os militares seja penal, porque cometeram crimes imprescritíveis, e queremos que sejam julgados pela justiça civil e não militar, como é hábito no Brasil.”
A decisão da Corte Interamericana só foi possível porque parentes das vítimas do Araguaia impetraram ação na justiça brasileira, para conhecer as circunstâncias de suas mortes e quem são seus assassinos. A ação tramita no Brasil desde 1982. Na OEA, o caso chegou em 1995.
“Procuro meu pai há 37 anos. Não é revanchismo, é justiça. A decisão da Corte, que aconteceu na Costa Rica, mostra que a decisão do STF foi uma decisão política. Essa sentença mostra que não estamos sozinhos”, afirma com lágrimas nos olhos, João Carlos Grabois, o Joca, filho de Criméia e André Grabois, para descrever a saga das famílias que buscam pelos entes desaparecidos.
Segundo a diretora para o Programa do Brasil do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), Beatriz Affonso, o Estado brasileiro tentou por diversas vezes conseguir o arquivamento do caso na OEA. Mas com a decisão da Corte, terá de cumprir a sentença. “Não cabe recurso”, conta.
“O Brasil não tem outra opção, vai ter de cumprir a decisão. E precisa fazer isso rápido, para podermos recuperar a nossa história. A sentença tornou a decisão do STF inócua. O judiciário brasileiro precisa aprender e a lição foi dada pela Corte (internacional). Foi um grande aprendizado”, destaca a juíza Kenarik Boujikian Felippe, da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD).
Beatriz lembra, no entanto, que um eventual não cumprimento da decisão por parte Estado brasileiro pode comprometer inclusive a possibilidade de o país disputar o tão cobiçado acento no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). “A próxima assembléia da OEA acontece em junho do próximo ano, em El Salvador”, adverte.
* Extraído da versão digital da Revista Caros Amigos.
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