domingo, 20 de junho de 2010

Saramago, o último grande narrador

*Roberto Numeriano


Numa cultura dominante em que a pulsão da morte constitui a sua

essência, o escritor José Saramago, falecido aos 87 anos no dia 18 de

junho, foi uma brilhante e genial exceção. Português da aldeia de

Azinhaga, filho de pais pobres da região do Ribatejo, Saramago não era

homem de concessões hipócritas quanto a princípios morais e políticos

nos quais acreditava, e, por isso mesmo, numa época em que tudo está à

venda ou pode ser relativizado em nome de projetos pessoais e / ou de

grupos, ele se manteve coerente até o fim da vida. Para o bem da alta

literatura, dos ideais socialistas e da própria humanidade.

Antigo militante do Partido Comunista Português, Saramago não era

“comunista de carteirinha” por acaso. Filiou-se ao PCP em 1969, quando

Portugal ainda vivia a ditadura salazarista. O ato foi apenas a

formalização de uma militância socialista que vinha de longa data,

efeito da sensibilidade moral de um jovem que, tendo nascido no meio

de pobres e miseráveis, cedo discerniu as causas da desigualdade

social e econômica dos portugueses. Aluno brilhante, teve de abandonar

o colégio porque seus pais não podiam pagar seus estudos.

Podia, pela revolta, renegar e esconder sua origem pobre. Podia, como

fazem muitos na ascensão social, defender idéias da classe que

espoliava os lavradores e proletários do Ribatejo. Podia, por

vergonha, fingir que nunca foi pobre. Podia, simplesmente, esquecer.

Mas há gente que nasce para lembrar, porque nunca esquece de si mesmo

em suas origens. E lembrar por si e pelos outros, pelos que têm boca e

língua, mas nunca são escutados; têm olhos e visão, mas são invisíveis

em um mundo onde a luz parece se projetar apenas sobre os bens, a

riqueza, o luxo, o poder e a ostentação.

Em Saramago, essas dimensões de mestre do romance e de ativista

político e social se imbricavam sem que uma tolhesse ou recalcasse a

outra. Foram sempre a expressão de uma persona criativa e combativa,

rica de uma humanidade onde percebemos a sabedoria dos simples de

coração, o humor, a luta dos deserdados, a crítica social e dos

(hipócritas) costumes, a denúncia da cegueira de um mundo onde a morte

inspira a política do capital, o alerta a respeito da alienação

coletiva dos seres humanos, embrutecidos na malha da indústria

cultural da incultura.

O poder de sua fábula traduzia justamente este universo, e não por

acaso pode explicar o fato de alguns o considerarem “difícil” e ao

mesmo tempo ele ser tão lido e admirado por milhões de pessoas, em

várias línguas. Em um dos seus raros acertos, o comitê de literatura

lhe concedeu o Prêmio Nobel em 1998.

Saramago é, possivelmente, o último grande narrador da humanidade,

considerada esta em sua dimensão de um espírito ou idéia universal. Em

suas obras, não há como não nos reconhecermos como seres humanos

completos, na dor ou na alegria, vivos ou mortos, duvidando dos deuses

e das crenças, amando e buscando. Sua morte marca (e aqui a frase

feita cabe) o fim de uma época em que a literatura está moribunda e

submetida aos escapismos de estilos que apenas revelam sua pobreza.

Também simbolicamente, sua morte ocorre em um momento no qual há uma

pulsão de morte no movimento de forças econômicas e políticas

erguendo-se do espólio neoliberal em vários países europeus, numa onda

neofascista que criminaliza migrantes, trabalhadores, etnias não

brancas, ativistas políticos e sociais de esquerda, além de estudantes

e desempregados.

Contra tudo isso, o grande narrador português nos deixou uma obra para

travar um combate que significa a permanência de uma luz que ele fez

brilhar nos seus personagens. Em Memorial do Convento, um dos seus

grandes romances, os protagonistas Baltasar Sete-Sóis e Blimunda

Sete-Luas são a quintessência do amor perene entre um homem e uma

mulher, para além do tempo, das fogueiras da Inquisição, da velhice.

Quem lê a obra e vê a vida de Saramago, sente que ele tinha o mesmo

amor pela humanidade.

*Roberto Numeriano é cientista político (UFPE), professor, jornalista e

candidato do PCB ao Governo do Estado de Pernambuco.

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