No campo dos direitos reprodutivos, enfrentamos uma situação grave: de um lado, está uma parte da sociedade e do governo sensível ao sofrimento de milhares de mulheres obrigadas a recorrer a abortos clandestinos; e de outro lado, setores religiosos fundamentalistas que atuam em nome de uma defesa abstrata da vida
Por Regina Soares Jurkewicz
Já não podemos falar em direitos humanos sem pensar nos direitos das pessoas de uma maneira integral e ampla, de uma forma que compreenda diferentes aspectos da vida e considere todos em suas diferenças.
Acreditamos que essa foi a visão que norteou o trabalho da Secretaria Especial dos Direitos Humanos durante o processo de elaboração do III Programa Nacional de Direi-tos Humanos (PNDH), publicado em dezembro do ano passado. O texto, entre outras coisas, procurou dar respostas a duas perguntas fundamentais: Quem são os que precisam ser protegido em seus direitos? E quais direitos devem ser garantidos?
A primeira indagação teoricamente é fácil de ser respondida: todo ser humano merece a proteção do Estado. No entanto, a história nos mostra outra realidade. Basta examinar-mos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, sem deixar de significar um avanço, não foi escrita pensando em todos e sim nos homens, brancos, heterossexuais e adultos.
Com o tempo, essa declaração,tão importante para a história dos direitos humanos, revelou-se insuficiente em seus enunciados, porque foi construída a partir de uma visão única do ser humano. As particularidades ficaram invisibilizadas e apenas um modelo foi universalizado. Várias iniciativas das Nações Unidas, por meio de conferências e tratados internacionais – que são pactuados por um número expressivo de países – têm mostrado que é preciso também trabalhar pelos direitos humanos de outros sujeitos históricos, como por exemplo, as mulheres, os jovens, as crianças e os idosos, os negros, os deficientes físicos, os homossexuais, bissexuais, transexuais, transgêneros, enfim, contemplar toda a multiplicidade de manifestações do humano.
Como sustenta Boaventura de Sousa Santos (1) “temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a sermos diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza. Por isso, é necessária uma igualdade que reconheça as diferenças, e uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.
As mulheres historicamente foram inferiorizadas e uma das principais conquistas do feminismo em todo o mundo tem sido o reconhecimento – por parte dos defensores de direitos humanos, das instituições, de esferas governamentais, da academia – que, sem elas os direitos não são humanos. Se é assim torna-se de fundamental importância ouvir o que as mulheres têm a dizer sobre seus direitos.
Quais direitos devem ser garantidos?
A tônica da proteção geral e abstrata em relação aos seres humanos foi a que prevale-ceu no século XIX e boa parte do século XX, baseada em uma noção de igualdade formal, que expressa o temor à diferença. Com o passar do tempo, novos direitos vão sendo construídos e reconhecidos, tais como aqueles que se referem às questões de justiça social, proibição da tortura, direito à cidadania e tantos outros fundamentais para a dignidade humana.
Com o reconhecimento das particularidades, nas décadas do final do século XX e em tempos atuais, conteúdos que foram historicamente desvalorizados, silenciados e natu-ralizados ganham expressão. Novos sujeitos políticos aparecem atuantes na história e ocupam os debates públicos.
As mulheres são as primeiras a afirmar que “os direitos sexuais e os direitos reprodutivos são direitos humanos. São universais, porque abarcam todos os seres humanos desde o seu nascimento; são interdependentes, porque se conectam com todos os demais direitos humanos. E são indivisíveis, porque são vividos e atuam de um modo conjunto e integral” (2).
Se os direitos sexuais e os direitos reprodutivos não são respeitados, então os direitos humanos não estão sendo respeitados. Os direitos reprodutivos concernem a autonomia para o exercício da própria capacidade reprodutiva. Estão relacionados à decisão de quantos filhos se quer ou não ter, à escolha do momento da reprodução e da forma como esta se dará. São direitos que afetam principalmente a vida das mulheres.Esses direitos são violados tanto quando as mulheres são esterilizadas sem consentimento, como quando são criminalizadas por interromper uma gravidez.
No campo dos direitos reprodutivos, o Brasil enfrenta uma grave situação: de um lado, temos uma parte expressiva da sociedade e do governo sensível ao sofrimento de mi-lhares de mulheres que se veem obrigadas a recorrer a práticas clandestinas de interrupção da gravidez – porque não são atendidas pelo serviço público; e de outro lado, setores religiosos fundamentalistas que em nome de uma defesa abstrata da vida, se empenham na luta contra os direitos dessas mulheres.
Continuar criminalizando o aborto em nada diminuirá o número de interrupções voluntárias de gravidez. Pelo contrário: a clandestinidade fomenta práticas inseguras e favorece a criação de estabelecimentos que buscam lucrar com a difícil situação que uma mulher enfrenta caso não queira ou não possa levar adiante uma gravidez. Aqui, a maioria das mulheres que aborta é católica, mas elas não podem dizer publicamente que o fizeram, sob pena de serem criminalizadas pelo Estado e excomungadas pela Igreja. Convivem então com um duradouro sentimento de culpa, pois desconhecem que na doutrina católica há argumentos que validam a decisão das mulheres por um aborto e que existem teólogos que defendem a validade dessa escolha. Não sabem também que os países que legalizaram a prática do aborto reduziram a incidência do mesmo, uma vez que passaram a oferecer educação sexual desde a infância, serviços mais qualificados de acesso a anticonceptivos e um atendimento digno.
Há várias pesquisas nacionais que mostram a discordância da população brasileira – inclusive católica – sobre a legislação vigente nessa área, bem como expressam o desejo de que o governo implemente políticas públicas para minimização do problema (3).
Em São Paulo, no dia 19 de janeiro foi divulgada uma pesquisa (4), cujos resultados apon-tam que a maioria dos paulistanos é contra a proibição do aborto. A pesquisa foi feita-com mais de 1,5 mil moradores da capital paulista, com idade superior a 16 anos. Os resultados mostram que mais de 60% da população é contrária a proibição do aborto e que apenas 6% está satisfeita com as políticas públicas em relação ao tema.
O que fez o III Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH)não foi mais do que ouvir a voz do povo brasileiro, sobretudo das mulheres. No entanto, os setores mais conservadores do Brasil – hierarquia católica, militares e ruralistas – manifestaram seu descontentamento e pressionaram o governo para que retrocedesse em aspectos importantes do programa. A Igreja Católica se sente atingida, porque o plano anuncia a proposição de ações coordenadas de governo que apoiem a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto. Reage também à retirada de símbolos religiosos de espaços públicos, proposta que significa uma manifestação clara de respeito à pluralidade religiosa e aos não adeptos a nenhuma religião.
Caberá aos nossos governantes manterem firmes suas decisões e não cederem frente às pressões religiosas. Também será responsabilidade do Estado efetivar o PNDH por meio de políticas públicas. Afinal vivemos em um país laico que não deve governar a partir de nenhuma doutrina religiosa. Ao contrário, sua missão é garantir os direitos de todas as pessoas, religiosas ou não. Lembramos que oferecer serviços de atendimento ao aborto não significa obrigar nenhuma mulher a praticá-lo, mesmo em casos de anencefalia, nos quais se sabe que o feto não terá vida consciente e duradoura após o nas-cimento. A legislação apenas vai garantir o direito daquelas mulheres que hoje desejam ou precisam abortar e estão recorrendo a parteiras e clínicas clandestinas. Defender os princípios de laicidade do Estado é fundamental para garantir um Brasil de fato para todos e verdadeiramente democrático.
Regina Soares Jurkewicz é membro da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir – Brasil; doutora em Ciências da Religião, formada pela PUC-SP.
1 - Manifesto por uma Convenção Interamericana pelos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, Segunda Versão, novembro de 2006.
2 - Idem.
3 - Visite o site www.catolicasonline.org
4 - Disponível em http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultnot/2010/01/19/maioria-dos-paulistanos-e-contra-a-proibicao-do-aborto-diz-pesquisa.jhtm?utm_source=uau&utm_medium=twitter&utm_campaign=uau-news
Palavras chave: Direitos humanos, mulheres, aborto, religião, catolicismo
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