sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

África Rebelde


Por Karima Bennoune*, no The Nation
Tradução: Antonio Martins

     Depois de mais de 23 anos no poder, o presidente da Tunísia, Zine el-Abidine Ben Ali, também chamado Zinochet, foi derrubado sexta-feira (14/1), após intensos protestos populares.

    Eles começaram depois que Mohamed Bou’aziz, um desempregado com formação universitária, ateou fogo em si mesmo, em 17 de dezembro, em protesto desesperado contra o confisco, pela polícia, das mercadorias que vendia como ambulante. Ele morreria dias depois.

    Bou’aziz jamais poderia imaginar as implicações de seu ato, apenas um mês depois. Seu sacrifício inspirou imensas manifestações que se espalharam pelo país, organizadas em parte graças ao uso inteligente do Twitter e Facebook. Elas defrontaram-se com a brutalidade das forças de segurança – mas a selvageria multiplicou o protesto. Manifestantes desarmados eram costumeiramente tratados com gás lacrimogênio. Muitos foram presos. Entre 70 e 80 pessoas foram mortas pela polícia, a balas ou devido a espancamento.

    A revolução, pacífica e democrática (pelo menos por parte dos que a fizeram) não foi dirigida, nem inspirada, pelos movimentos fundamentalistas que tentam ocupar o espaço de oposição, em muitos países árabes e da África do Norte, nos últimos anos. Foi, ao contrário, um apelo amplamente secular para reforma política e justiça social. Como mostram as imagens, mulheres, muitas delas sem véu, tornaram-se cada vez mais visíveis nas marchas de protesto.

    Pode-se esperar que esta vitória inicial do povo da África do Norte sirva de exemplo sobre o que é possível em outros países da região. É o que Noam Chomsky chamou de ameaça do bom exemplo. Um ditador foi derrubado pela revolta popular. Agora, nenhum ditador está a salvo.

    A esperança é uma força poderosa e incandescente. Esperança política tem sido um bem muito raro, nesta parte do mundo. A revolução desencadeada pelo gesto de Bou’aziz pode tê-la resgatado. Mas, assim como o poder da esperança, também não se deve subestimar o perigo das esperanças não realizadas.

    O futuro imediato da Tunísia ainda não está claro. Mohammed al-Ghannuchi, o primeiro-ministro também no poder desde 1999, assumiu a presidência desde a fuga do presidente depoisto, Ben Ali, a quem a Arábia Saudita deu as boas-vindas. Foi declarado Estado de Emergência, com soldados a postos em prédios públicos, tanques nas ruas de Tunis e proibições de encontros públicos.

    O governo precisa responder às reivindicações que provocaram o levante popular – criação de empregos, atendimento das necessidades da população, distribuição de riqueza, garantia da liberdade de expressão e associação, criação de instituições democráticas – o que é muito distinto de uma maquiagem para preservar o atual regime. A comunidade internacional, e o governo dos EUA, deveriam apoiar este processo.

    O maior impacto externo das transformações na Tunísia poderia manifestar-se na vizinha Argélia, que visitei duas vezes no último outono, e que foi palco de levantes esparsos e esporádicos, em 2010. O país acaba de viver uma semana de protestos juvenis intensos e generalizados, aparentemente resultantes da revolta – por muito tempo represada – com alto desemprego, corrupção, desigualdades e la hogra, a arrogância com que as autoridades frequentemente tratam os cidadãos comuns. No entanto, a estopim imediato poderia ser o aumento agudo do preço de gêneros como óleo de cozinha e açúcar, no começo do ano. Vale ler este artigo, da jornalista Chawki Amari, em El Watan, um dos maiores jornais argelinos.

    Algumas análises sugeriram que os distúrbios iniciais podem ter sido provocados – talvez por interesses privados que controlam os mercados de açúcar e óleo e estão descontentes com as medidas regulatórias adotadas pelo governo argelino. É difícil dizer. Mesmo que tenha sido assim, a revolta popular legítima ultrapassou claramente o complô inicial. Alguns – apenas alguns – dos protestos recentes tornaram-se violentos, quando jovens atiraram pedras na polícia e em carros, queimaram pneus e saquearam lojas. Infelizmente, as vias para o protesto pacífico estão bloqueadas na Argélia, devido à imposição contínua, desde 1992, do Estado de Emergência.

    Um exemplo: depois dos protestos das últimas semanas, um grupo cívico denominado Associação Intercomunal de Aïn Benian-Stao tentou organizar um encontro pacífico na cidade costeira de Staoueil, a cerca de 20 quilômetros de Argel. Seus esforços foram frustrados por prisões “preventivas”. O escritor e jornalista argelino Mustapha Benfodil, que procurava cobrir o evento, está entre os detidos. Ele relatou mais tarde suas experiências no El Watam. Como observa, os “encarcerados pela polícia eram suspeitos da acusação kafkiana de ‘tentativa de encontro pacífico’”… Eles foram libertados, mas muitos outros jovens manifestantes continuam presos, em dodo o país.

    As raízes da lei de emergência argelina assentem-se na terrível luta contra o fundamentalismo armado, que se desenrolou nos anos 1990 e provocou 200 mil mortes. O terrorismo continua a ser uma ameaça real, em face das atividades da Al Qaeda na região do Magreb. Mas as regras de emergência atuais atingem frequentemente críticos do governo que nada têm a ver com o terror. (Durante a recente onda de protestos, os esforços dos fundamentalistas para cooptar os manifestantes resultaram em enorme fracasso). Na prática, o governo argelino usa agora o Estado de Emergência para banir reuniões públicas de qualquer tipo.

    Visitei Argel no final de novembro, para participar de um encontro sobre um projeto de lei contra a violência sobre as mulheres. A atividade, que ocorreria no Hotel Safir, foi oficialmente desautorizada na véspera. Ocorreu discretamente, numa pequena sala em local mais remoto, o que impediu que muitos participantes comparecessem. É chocante que um encontro de mulheres que se unem para enfrentar a violência sexual tenha de obter permissão oficial. Quem, exatamente, está sendo protegido por uma legislação “de emergência” em tal cenário?

    Para a oposição democrática da Argélia, o desafio atual é encontrar um meio de converter a explosão juvenil das últimas semanas em mudança política positiva; e ampliar a sopro de energia que vem da vizinha Tunísia. Segundo o escritor Benfodil, a primeira tarefa exige a mobilização da sociedade civil, sindicatos, intelectuais, classe média, ONGs e outros, “para transformar este inverno impetuoso numa primavera democrática”.

     Alguns analistas avaliam que será difícil alcançar transformação política real na Argélia, um país onde o governo controla os recursos materiais relevantes e os usa seletivamente, para calar setores da população. Mas as tentativas de reivindicar abertamente mudanças prosseguem, como testemunha uma recente manifestação pacífica da juventude em Argel. Resta verificar quais serão os impactos dos ventos que varrem a Tunísia. Bou’aziz, o homem que se imolou, teve poucas oportunidades de influir na sociedade em vida. Após sua morte, porém, ele pode ter ajudado a mudar não apenas seu país, mas toda a região.
* Karima Bennoune é advogada e professora de Direito Internacional e Direitos Humanos, na Rutgers University. Escreve o blog Intlawgrrls, onde este texto foi originalmente publicado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário