quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Quando Deleuze encontra Marx


Por Bruno Cava, editor do Quadrado dos Loucos

→Resenha de LAZZARATO, Maurizio, As Revoluções do Capitalismo, trad. de Leonora Corsini, ed. Record, 2006, 274 pág.

    As Revoluções do Capitalismo abre e fecha com citações do filósofo pós-estruturalista Gilles Deleuze. A presença de seus conceitos perpassa o livro, como terreno firme para as teses do sociólogo italiano Maurizio Lazzarato. Radicado na academia francesa, o autor esteve engajado nas lutas dos trabalhadores culturais na França, como uma das principais vozes do movimento. Também chamados “intermitentes do espetáculo”, mobilizaram-se a partir de 2002 para afirmar novos direitos, diante da política neoliberal que os excluía. Intelectual multimídia à moda de Deleuze, as intervenções de Lazzarato abrangem cinema e vídeo; e co-fundou a Revista Multitudes.
O autor também publicou Trabalho Imaterial (2001), em co-autoria com o filósofo marxiano Antônio Negri. Nesse outro livro, analisa-se o novo estatuto do trabalho no século 21, em que o imaterial – isto é, valores, crenças e desejos – põe-se no centro do funcionamento do capitalismo. Logo, da resistência ao sistema. As Revoluções do Capitalismo, por sua vez, chegou ao Brasil na coleção A Política no Império, que se propõe a abrir frentes de luta contra o capitalismo contemporâneo. Assim, a obra situa-se numa convergência improvável, entre um pensamento oriundo do operaísmo italiano dos anos 1960 e 1970, de extração marxista (embora revisionista), e o pensamento dito pós-moderno próprio da filosofia deleuziana. Uns e outros costumam torcer o nariz entre si.

    Na questão da organização política, os marxistas apontam nos deleuzianos a esquiva da militância mais dura e do primado da luta de classes, bem como a propensão a um dandismo individualista e siderado; enquanto os deleuzianos criticam o leninismo centralista e a caretice dos aparelhos tipicamente marxistas. Quanto ao sistema filosófico, os marxistas costumam atribuir-lhes uma hipertrofia conceitual, uma linguagem esotérica e autorreferente, como uma loja de brinquedos chineses, bonitos porém intocáveis de tão delicados; enquanto os deleuzianos nivelam os marxismos como ortodoxias dogmáticas e simplórias, com uma concepção anacrônica das lutas, incapaz de atuar nos novos desafios do contemporâneo.

    Lazzarato polemiza abertamente com o marxismo o livro todo. Com esse título, não poderia ser diferente. Para o autor, a maioria das análises marxistas ainda parte das “fábricas manchesterianas de Marx ou das manufaturas de alfinetes de Adam Smith”. Achata relações complexas de poder e totaliza uma realidade múltipla e irredutível. O marxismo perdeu o trem da história. Foi esvaziado espontaneamente pelas pessoas, assim como elas deixaram em massa os países do antigo bloco soviético. Os atuais partidos e sindicatos vermelhos não passam de “urubus”, que parecem rondar a carniça do socialismo real, mas na realidade estão atrás de sobras do capitalismo. Refugiaram-se, cínicos, em pautas corporativistas da pequena fração sindicalizada, ou então em cátedras universitárias.

    Na última década, as manifestações altermundialistas a partir de Seattle (1999), os Fóruns Sociais Mundiais (na foto) e as marchas globais contra a guerra do Iraque foram a ponta do icebergue de um novo ciclo de lutas, com seus novos problemas e desejos. Como na explosão insurrecional do maio de 1968, descortinou-se um horizonte político pós-capitalista e pós-socialista. Em vez do socialismo em um mundo só, afirmou-se que muitos mundos são possíveis. Hordas de marxistas, trotskistas, anarquistas, midialivristas, black blocs, sem-terra, tutte bianche, sindicalistas, blogueiros – todos se coordenaram numa militância sem bandeira unificada, discurso pronto ou palácio de inverno a ser capturado.

    Para o autor, na esteira de Deleuze, um novo léxico se impõe às lutas. Não se trata mais de combater a exploração do trabalho pelo capital. Mas constituir mundos, onde não haja uma produção fixável ou mensurável o suficiente para o capitalismo expropriá-la. Isto significa, em primeiro lugar, desviar da perspectiva dualista, do tipo isto ou aquilo, para diversificar pautas de valores e direitos. Assim, a luta por direitos de gênero ou sexuais não deve orientar-se pelo dual homem/mulher, como no feminismo clássico, porém pela afirmação dos “mil sexos”. O movimento GLS vira LGBT e num piscar de olhos LGBTT, mas nem todas as letras do alfabeto poderão contemplar o campo dos possíveis. Do mesmo modo, a classe proletária do marxismo tradicional deve converter-se em “mil diferenças”, cada qual com seu universo de afetos e prioridades. Em vez do trabalho em equipe dos coletivos, trata-se agora da militância em rede, juntos e separados.

    Isso não enfraquece a luta global? Não divide os esforços da militância, diante de um inimigo tão portentoso, tão monstruoso quanto o Capital? Justamente. Não. A força do capitalismo contemporâneo está em sua enorme capacidade de modulação. A sua monstruosidade consiste nessa multiplicação de modos de apreensão, de recodificar e reincorporar tudo aquilo que tenta se colocar além dele. Daí que dialético é sempre o capitalismo, para quem nada pode ficar de fora. Pensar e lutar dialeticamente, unificando um grande movimento da história, é já ter perdido a luta. Significa posicionar-se já dentro do mundo do inimigo. Por isso que, para Maurizio, os socialistas amiúde findam mais realistas que o rei e operam com termos irremediavelmente capitalistas, tais como exploração, dialética, regulação, trabalho, proletariado etc.

    No século 21, o coração do capitalismo não é mais a fábrica, mas a empresa. Menos do que fabricar o objeto, o principal está em fabricar o desejo e a crença. A imagem chega antes do produto. O espetáculo, antes do consumo. A empresa não fabrica o objeto, mas o mundo em que esse objeto existe. O triângulo produtor-consumidor-produto existe nesse mundo. O publicitário torna-se o cérebro do sistema. O marketing, o seu motor. Não existe mercado – regido pela lei da oferta e da procura ou pela escassez. O que existe é a constituição de públicos, seguida de sua fidelização. A demanda não se subordina à oferta: é criada independentemente dela.

    Hoje, o capitalismo coloniza o campo de possíveis, quer dizer, apreende os fluxos de desejos e lhes extrai lucro. Daí precisar de redes produtivas, as únicas capazes de inventar mundos e neles prender a atenção das pessoas. O trabalhador deve ser criativo e colaborativo, do operador de telemarketing à consultora financeira. Já o consumidor deve ser autônomo. Primeiro, para selecionar dentre a gama de produtos/mundos disponíveis. Segundo, para gerir ele mesmo o crédito (o campo de possíveis) e a renda. O indivíduo torna-se empreendedor de si mesmo. Espera-se que ganhe o suficiente para “investir” em sua saúde, educação, aposentadoria – atividades não mais consideradas serviços sociais, mas “investimento individual”.

    Ora, pode-se objetar, a produção industrial não acabou nem perdeu relevância. Por um lado, 90% do valor de um tênis se devem à publicidade, 60% de um programa de computador ao copyright e 50% de um filme à pós-produção. Por outro, os mesmos tênis são fabricados por trabalho semiescravo na Birmânia e o hardware, em que roda o mesmo software, montado por subempregados no México. O recorte Norte/Sul prossegue e se deve ao chão-de-fábrica. Sim, responderá Lazzarato, isso em nada afasta a primazia do imaterial. Os mundos industrial e pós-industrial convivem e se combinam no grande sistema integrado do capitalismo. É só ver como muitos CEO de grandes multinacionais são recrutados no Brasil, inúmeros cientistas e pesquisadores na Índia, e não poucas crises financeiras disparam de países terceiromundistas.

Mas qual o problema disso tudo?

    Sobretudo: não precisamos do capitalismo. Não é ele quem gera valor, mas as redes colaborativas das pessoas, na sua organização de fluxos e criação de mundos. O capitalismo fixa os fluxos e isola os circuitos dessa rede global, e assim acumula. Faz isso não por princípios intrínsecos (“leis econômicas”) do sistema, mas pela coação do direito. As patentes e o copyright põem os ovos de ouro das empresas. Mesmo que signifique negar acesso à cultura para muitos, ou então a cura da AIDS…

    Além disso, ao mesmo tempo que tudo é possível, nada é possível. Tudo já foi inventado. Resta ao consumidor montar o seu perfil com as marcas e produtos oferecidos, nesse sonolento programa de variedades. O mundo vendido pelo capitalismo hoje é banal, entre a caretice sufocante do comercial de margarina e a cosmética biônica dos de cerveja. De que adiantam cem canais de TV, se do mesmo modo fazem-nos correr, entediados, um depois do outro?

    Outros mundos são possíveis. Lazzarato propõe mudar a equação. Lutar pelo acesso universal aos direitos sem perder de vista a afirmação das mil diferenças e dos mil sexos. Igualdade não se opõe à diferença: propicia-a. Contra o capitalismo em um mundo só, multiplicá-los por mil. Para isso, o autor sugere uma “guerra semiótica”, uma “guerra estética”, uma disputa midiática dos públicos e dos processos de mobilização de sua atenção. Na nova “economia do sensível”, o ativismo cultural torna-se imediatamente político.

    Ademais, ao contrário da postura cínica de parte da esquerda, não lutar pelo salário de poucos, mas pela renda de todos. O salário pressupõe a remuneração do assalariado por um serviço prestado, dentro da lógica empregatícia. Entretanto, as redes e fluxos operam transversalmente, por sobre os obstáculos impostos pela empresa. Nesse contexto, somente a renda de todos consegue ser justa na mesma medida em que fomenta a produtividade global. Esta pauta enfrentará a resistência das esquerdas “salariais”, que classificam a política de redes como assistencialista e precária. Portanto, desinteressada em deslizar da lógica industrial, essa esquerda faz a cama do capitalismo.

    Maurizio Lazzarato espicaçou o marxismo em vários capítulos de seu livro. Mas como não vê-lo, revitalizado, nessa crítica tão perspicaz dos meandros do capitalismo? Com efeito, Marx analisou as relações de poder da nascente sociedade industrial, porém decerto teria alcançado outras interpretações e conclusões hoje. O marxismo é dos poucos sistemas que confessa a sua precariedade e vive em tenaz autocrítica.

    Se o problema do marxismo não é Marx, mas os marxistas; o do deleuzianismo tampouco é Deleuze. O contrário do burguês não é o boêmio nem o acadêmico, mas o militante. Nesse sentido, graças ao autor, o encontro de Deleuze com Marx não só foi feliz, na acepção spinozana, como incremento da potência, como também um eloquente chamado à luta a marxistas e deleuzianos.

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