segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A vez do aborto



Acabava de ser sancionada a lei sobre o matrimônio civil homossexual na Argentina quando, no Ministério da Saúde, começou-se a debater a legalização do aborto e suas contradições. Até o final do ano, dois projetos sobre interrupção voluntária da gravidez serão analisados no Congresso

por Marta Vassallo
    Após a ampliação de direitos civis implícitos na sanção das leis de educação sexual, de proteção integral às mulheres e de matrimônio civil para gays e lésbicas – sancionadas no último dia 15 de julho na Argentina –, nada mais coerente que um impulso à legalização do aborto no país. Os fundamentalismos religiosos, após terem perdido a batalha do casamento homossexual, afiam suas armas para uma luta muito mais importante, no seu entender. Ao mesmo tempo, multiplicam-se na sociedade os indícios de uma abertura cada vez maior da opinião pública com relação à descriminalização do aborto. Com a palavra, os legisladores.

    Acabava de ser sancionada a lei sobre o matrimônio civil homossexual quando, no Ministério da Saúde, surgiram as contradições em torno da legislação sobre o aborto. Em 21 de julho, o ministro da Saúde, Juan Manzur, desmentiu a informação divulgada na véspera pelos meios de comunicação de que ele teria assinado a Resolução Ministerial 1184, dando aval ao protocolo técnico de atendimento pós-aborto. Ele desautorizava, dessa forma, a coordenadora do Programa Nacional de Saúde Sexual e Procriação Responsável, Paula Ferro.

    No entanto, anteriormente, em 13 de julho, ao apresentar o 6º Relatório Oficial periódico da Argentina na 46a Sessão do Comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW, sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, a diretora do Conselho Nacional das Mulheres, Lidia Mondelo, relatava: “Com relação aos abortos não passíveis de punição, elaborou-se e foi atualizado o protocolo de atendimento integral, aprovado por Resolução Ministerial 1184/2010, em 12 de julho…”. O ministro desmentiu ter assinado a Resolução, mas não anulou o protocolo.

    O Protocolo Técnico para o Atendimento Integral dos Abortos não Passíveis de Punição1é um protocolo de atendimento nos hospitais públicos às mulheres hospitalizadas em consequência de um aborto séptico2e foi uma das últimas iniciativas do ministro da Saúde da gestão presidencial anterior, Ginés González García. Ele assegura a prática de aborto nos casos não passíveis de punição (risco para a vida da mãe, risco para sua saúde, gravidez em consequência de estupro, atentado ao pudor de uma mulher incapaz) sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário, e vigora, atualmente, nas províncias de Buenos Aires, Chubut, Neuquén e Santa Fé.

    As manchetes do jornal La Nación de 21 de julho, “Polêmica ampliação do aborto legal” e “Especialistas afirmam que se constitui uma legalização do aborto”, são enganosas. O Protocolo não modifica a lei, mas incorpora na jurisprudência os avanços que se expandiram sob a gestão de González García. A noção de saúde já não é a de 1921, data do artigo 86 do Código Penal que estabelece as causas de não punição do aborto, mas a da Organização Mundial de Saúde (OMS): “A saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de enfermidades”. Todo estupro é um estupro, e não somente o de “uma mulher incapaz ou demente”. Basta a declaração da mulher que solicita o aborto, pois se fosse necessário esperar o trâmite de um processo judiciário, o prazo em que é possível realizar um aborto teria vencido. Além disso, sendo o estupro um delito de instância privada, para a vítima de estupro a denúncia é uma opção, não uma obrigação.

    Tampouco se trata de legalização do aborto, que permanece no Código Penal, mas sim de estabelecer com clareza (dada a reticência dos médicos em cumprir a norma) as exceções em que o aborto não é passível de punição. Assim, o protocolo instrui os médicos acerca do tratamento correto e humano com relação às pacientes, que são “castigadas” por tentar abortar com curetagens feitas sem anestesia, isso quando não são denunciadas à polícia.

    Após a suposta polêmica entre o ministro Manzur e a coordenadora Ferro (que não foi destituída de seu cargo), a falácia midiática aponta agora para o que realmente está em jogo: o debate no Congresso sobre a legalização do aborto.

Sociedade em movimento

    Durante o ano de 2010, foram apresentados no Congresso dois projetos de lei de interrupção voluntária da gravidez. Um, da Campanha pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito, que havia sido apresentado em maio de 2007, deixou de tramitar em fevereiro de 2010 e foi apresentado novamente em março, desta vez com a assinatura de 50 deputados de todas as coalizões partidárias. O outro é o do grupo Novo Encontro. O projeto da Campanha estabelece em 12 semanas o período durante o qual é possível realizar um aborto por livre decisão da mulher, e o prazo é prorrogado para 22 semanas caso se trate de uma gravidez resultante de estupro, haja má formação do feto que torne inviável sua vida extrauterina ou ponha a saúde da mãe em risco. O do Novo Encontro estabelece em 14 semanas – tal como a lei de aborto aprovada na Espanha – o período em que o aborto seria legal. Ambos retiram o aborto do Código Penal, salvo quando se trata de aborto realizado contra a vontade da gestante. A Comissão de Legislação Penal, presidida por Juan Carlos Vega, da Coalizão Cívica, comprometeu-se a tratar os projetos antes do fim do ano.

    Os posicionamentos diante desses projetos de lei não seguem linhas claramente partidárias. Trata-se de um voto transversal, tal como ocorreu a propósito da extensão do matrimônio civil a casais do mesmo sexo. Nos grupos de direita (PRO, Peronismo Federal), os apoios são excepcionais, enquanto que no espectro de centro-esquerda (Novo Encontro, Projeto Sul, GEN, Partido Socialista), é unânime. Por sua vez, os grandes agrupamentos (radicalismo e peronismo da Frente para a Vitória – FpV) estão divididos. Sem dúvida, a posição contrária ao aborto pela presidente Cristina Kirchner pesa nas contradições da FpV.

    Em 30 de julho de 2009, o agrupamento Lésbicas e Feministas pela Descriminalização do Aborto abriu a “Linha Aborto: mais informação, menos riscos”, um telefone celular onde se informa como usar o misoprostol como método farmacológico para abortar. O misoprostol é vendido com receita como protetor gástrico; seu uso para abortar é ilegal, o que criou um mercado paralelo no qual os comprimidos são mais caros, e consegui-los em quantidade suficiente leva muito mais tempo. E o que é pior, nem sempre as compradoras são instruídas corretamente sobre como manipulá-los.

    Num âmbito legal, a difusão do aborto farmacológico deveria reduzir as mortes. É o que ocorreu no Uruguai, onde o ex-presidente Tabaré Vázquez vetou os artigos da recém-regulamentada Lei de Saúde Sexual e Reprodutiva que instituíam o aborto por decisão da mulher, mas os médicos nos hospitais instruem sobre métodos abortivos seguros, incluindo os farmacológicos, e a mortalidade materna por aborto séptico foi reduzida a zero em 2009.

Feto e pessoa

    A principal e mais ferrenha oposição ao aborto, não importa em que circunstâncias, provém da hierarquia da Igreja Católica. Desde o pontificado de João Paulo II, o Vaticano equiparou o aborto a um genocídio e o apresenta como a máxima manifestação da denominada “cultura da morte”. A argumentação principal é a de que, desde o momento da concepção, o ser concebido é uma pessoa, a mais indefesa. O recurso favorito dos chamados grupos “pró-vida” é a acusação de “assassinos” tanto às gestantes que praticam o aborto como aos que apoiam sua legalização e a exibição de cartazes horripilantes para ilustrar a destruição do feto no momento do aborto. Imagens falsas, uma vez que os fetos mostrados se assemelham a um recém-nascido e não correspondem ao grau de evolução de um embrião de até 12 semanas. A biologia não pode responder de maneira unívoca à pergunta sobre quando o ser humano vivo começa a ser uma pessoa; a resposta é sempre cultural e política. Mas é indubitável o impacto obtido ao se referir exclusivamente à vida do feto numa cultura em que a mulher está associada à imagem de mãe e onde a maternidade é imbuída da noção de sacrifício, tendo as mulheres encontrado aí o seu papel principal.

    Para a OMS, o ser humano está constituído como tal após o terceiro mês a partir da fecundação, quando o desenvolvimento do sistema nervoso central dá lugar a sensações, a alguma forma de consciência. No entanto, para negar a possibilidade da legalização do aborto na Argentina, costuma-se aludir ao direito à vida, consagrado no Artigo 4.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

    Diante da suposta preocupação com o “feto”, levantada pelos fundamentalismos religiosos, a antropóloga Rita Segato, após assinalar que as culturas indígenas do Amazonas, por exemplo, sempre aplicaram o princípio da defesa da vida já nascida frente ao direito à vida concebida como absoluto, recordou que a oposição ao aborto busca o controle das mulheres, e não a proteção do feto: “O corpo das mulheres é o último bastião de patrimônio territorial, o último reduto de dominação para Estados, igrejas e outras instituições… Não são razões doutrinárias, nem teológicas nem morais; são razões de poder e de ostentação de poder”.

    Mas há outro núcleo de oposição mais oculto e nada espiritual: o negócio do aborto clandestino, consolidado através de décadas de duplo discurso e dupla moral. O grupo Lésbicas e Feministas pela Descriminalização do Aborto calcula em US$ 300 milhões anuais a arrecadação nos circuitos clandestinos da Argentina, onde um aborto cirúrgico seguro custa entre 2 mil e 5 mil pesos. Os métodos inseguros, aos quais recorrem aquelas que, por razões econômicas, não têm acesso aos demais, engrossam as cifras de lesões graves e mortes por aborto séptico: calcula-se que, entre 1984 e 2008, morreram 2.578 mulheres por complicações devidas a abortos sépticos; em 2007, foram registradas 60 mil hospitalizações de mulheres pobres por essa razão; 336 delas morreram.

    A Argentina ostenta uma taxa de mortalidade materna desproporcionalmente alta para seus indicadores de desenvolvimento: uma média nacional de 40 mortes maternas para cada 100 mil nascidos vivos; a primeira causa de morte materna são as complicações derivadas de abortos clandestinos. Calcula-se também que 40% dos casos de gravidez terminam em aborto e que há 600 mil abortos anuais. Um dos principais motivos de tão alta porcentagem de casos de gravidez não desejada é qualitativo: a falta de autonomia das mulheres em estabelecer as condições de suas relações com os homens. Essas cifras acentuam a ênfase das campanhas a favor da descriminalização e legalização do aborto em seu caráter de problema de saúde pública, deixando em segundo plano a defesa do direito de decisão da gestante, numa concessão ao machismo vigente.

    As últimas pesquisas registram um notável aumento da opinião pública a favor do direito ao aborto. No mês de julho, uma pesquisa da consultora Mora e Araujo apurou que 44% dos pesquisados são a favor da legalização do aborto, 24% a favor da não punição em certos casos, e 25% a favor da punição. No mesmo mês, uma pesquisa do Ibarómetro apontava que 60% dos pesquisados, mesmo não estando de acordo com a prática do aborto, opunham-se a que a mulher que pratica o aborto fosse condenada, 58% apoiavam a ideia de que a mulher tem direito à interrupção voluntária da gravidez, e 30% negavam esse direito.

    A atual gestão presidencial caracterizou-se pela ampliação dos direitos civis por meio de diversas medidas, mas com relação ao aborto inscreve-se na persistência da negativa desse direito às mulheres, que caracteriza outros governos de vezo popular da região: Rafael Correa, no Equador; Tabaré Vázquez, no Uruguai; o governo Lula, no Brasil; Hugo Chávez, na Venezuela; Daniel Ortega, na Nicarágua; Lionel Fernández, na República Dominicana; Mauricio Funes, em El Salvador; e Evo Morales, na Bolívia.

Marta Vassallo é jornalista.


(2) Aborto séptico é quando existe uma infecção do útero e de seus anexos antes, durante ou após o aborto. Nos EUA, previamente à legalização do aborto, o aborto séptico era associado a abortos induzidos por pessoas não treinadas, com técnicas não estéreis.

Palavras chave: aborto, Argentina

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