quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O mundo não é um Golem


Por Uri Avnery, do Gush Shalom [Bloco da Paz] (22/01/11), Israel
Tradução: Coletivo Vila Vudu

    Israel, como todos sabemos, é a terra do impossível sem limites. Em Israel, por exemplo, diplomatas fazem greve.

    Greve de diplomatas? Impossível! Carteiros fazem greve. Estivadores. Mas diplomatas? O que poderia ser mais conservador, mais ‘establishment’, que os diplomatas? Em Israel, servem o governo, seja qual for. Diplomata é gente que encontra explicações para o que fazem os governos, façam o que fizerem.
    Pois em Israel, é possível: os diplomatas israelenses, todo o serviço diplomático, todo o ministério de Negócios Exteriores cruzaram os braços. Estão em greve. Nada de passaportes para os cidadãos que perderam os documentos em Moscou, nem ajuda do consulado a cidadãos que estejam mofando num xadrez em New York. Pararam todos os preparativos para a visita de Binyamin Netanyahu a Paris.

    Há anos, o pessoal diplomático trabalha sob condições miseráveis. Os salários beiram o ridículo. Então… entraram em greve.

    O primeiro-ministro está furioso? O ministro dos Negócios Exteriores perdeu o sono? Nem de longe. Netanyahu não moveu um dedo para por fim à greve, e Avigdor Lieberman não deu um passo para tentar levar seus funcionários de volta às mesas de trabalho. Não dão a mínima. Ao contrário, parecem contentíssimos. No que dependa deles, que a greve continue para sempre.

E estão certíssimos. Essa semana, todos vimos o quão certos estão.

    O presidente da Federação Russa, Dmitry Medvedev, tinha visita marcada a Israel. Mas antes, foi a Jericó, considerada a mais antiga cidade do mundo. Ali, na presença do presidente Mahmoud Abbas, declarou que a Rússia reconhecera o Estado palestino há muito tempo e que continua a reconhecer o direito dos palestinos a terem seu Estado, com a capital em Jerusalém Leste.

    Não é bem assim. Não foi a Rússia que reconheceu a Palestina, mas a União Soviética. E reconheceu o Estado virtual que Yasser Arafat declarou em 1988. É coisa muito diferente de reconhecer o Estado palestino agora, quando já se aproxima de tornar-se realidade.

    Depois de visitar Jericó, Medvedev deveria ir a Jerusalém, para ser fotografado ao lado de Binyamin Netanyahu e apertar a mão de Avigdor Lieberman. Como Netanyahu reagiria à declaração de Jericó? Como arrancar-se do atoleiro, como afastar-se da questão sem se auto-humilhar e sem ofender o maior país do mundo?

    A greve dos diplomatas israelenses resolveu o problema. Recusaram-se a preparar a visita e organizar as reuniões. Medvedev entendeu, e os dois grandes estadistas – Netanyahu e Lieberman – respiraram aliviados.

    No fundo do coração, Lieberman com certeza encantou-se com a atitude do pessoal que trabalha para ele, e que ele odeia. Dessa vez, salvaram-lhe a pele. O que poderia dizer a Medvedev? Desde que entrou no ministério de Negócios Exteriores como um elefante em loja de porcelana, não faz outra coisa além de repetir que mantém magníficas relações com a Rússia. Os EUA o amaldiçoam? Quem liga? EUA são império decadente. Os europeus não querem recebê-lo? Quem liga? Quem, afinal, os europeus pensam que são?

    Mas a Rússia é a Rússia. Ali, sim, temos amigos de verdade. Lieberman é admirador de Vladimir Putin, aquele grande democrata, que sabe lidar com gentinha, como os chechenos. Lieberman e Putin têm a mesma língua-mãe. Lieberman não se cansa de pavonear-se de que mantém relações íntimas com a Rússia. E, agora, a Rússia lhe faz essa falseta. Que desgraça!

    A verdade é que Putin não é amigo de Lieberman. Yvette Lieberman (esse é seu nome verdadeiro) só tem um amigo no mundo: Aleksandr Lukashenko, Presidente da Bielorrússia, “o último ditador na Europa”.

    Sim, Lieberman não nasceu em Bielorrússia, mas na Moldávia Soviética. Mas não há dúvidas de que Bielorrússia é sua segunda pátria. Passava férias em Minsk, capital da Bielorrússia. Escondeu-se lá, quando, precisou chantagear (de fato, nem precisava) Netanyahu, até que “Bibi” implorou-lhe que se unisse ao governo de coalizão.

    Lukashenko é sua alma gêmea. Seu modelo. Aprendeu com ele a lidar com organizações de direitos humanos. É fórmula patenteada pelo presidente da Bielorrússia, apenas licenciada para o líder do partido “Israel nosso lar”. Foi Lukashenko quem mandou aviso oficial aos ativistas de direitos humanos em seu país, ameaçando-os com pesadas penas se continuassem a “distorcer informações” sobre a Bielorrússia.

    “O ministério da Justiça distribuiu alerta por escrito”, diz o texto, “para o Comitê Helsinki sobre a Bielorrússia, a propósito de violações da lei sobre organizações civis e mídia e por distribuir informação falsa que desmoraliza as agências de aplicação da lei e distribuição de justiça do país”. A polícia invadiu sedes de organizações de direitos humanos e a KGB (sim, os velhos nomes sobrevivem na Bielorrússia) abriu uma investigação oficial.

    Daí Lieberman colheu a inspiração, quando declarou guerra à paz e aos ativistas dos direitos humanos em Israel, os quais, essa semana, chamou de “colaboradores do terrorismo”. Não falo línguas eslavas, mas tenho certeza de que a expressão soa muito mais autêntica em bielorrusso que em hebraico.

    Há quem ria (pelo menos por enquanto) de Lieberman dizer que as organizações do campo da paz e defensoras dos direitos humanos ‘deslegitimam’ o Estado de Israel e deslegitimam, sobretudo, o exército israelense.

    Mas não se pode rir da própria deslegitimação. Cada dia que passa, mais e mais governos reconhecem o Estado da Palestina, e, no processo, batem pesado no ouvido do governo de Netanyahu.

    Quando o Conselho Nacional Palestino declarou, há 22 anos, a fundação do estado palestino independente, cerca de 110 países reconheceram o novo estado. Todos elevaram as delegações palestinas ao status de embaixadas. O governo de Israel ignorou-os. Para o governo de Israel, seria declaração vazia e reconhecimento sem significado. Nada foi alterado. Aos olhos do governo de Israel, outra colônia exclusiva para judeus na Cisjordânia seria mais importante que a opinião de uma centena de países. Como dizem em iídiche: Oilam Goilam – o mundo é um Golem (o monstro tolo de lendas judaicas.).

    Mas a nova onda de reconhecimentos do Estado palestino é coisa completamente diferente. Quando países importantes como Brasil, Argentina e Chile reconhecem a Palestina, arrastando com eles outros países latino-americanos, a coisa é importante. Quando a Rússia renova o reconhecimento, pela voz de seus mais altos representantes e em solo palestino, é evento importantíssimo. Se todos estão confiantes no apoio inabalável dos EUA, ao qual Israel se habituou, devem começar a prestar atenção a pequenas notícias que apareceram essa semana: a delegação permanente da OLP em Washington DC foi autorizada a hastear a bandeira palestina à entrada do prédio – direito de que só gozam as embaixadas.

    Está em andamento, um interessante roteiro. Dois terços dos países do mundo já reconheceram o Estado da Palestina, e a onda cresce. Já não são apenas pequenos Estados do Terceiro Mundo, mas atores significativos do cenário mundial. Mahmoud Abbas e Salam Fayad continuam silenciosa e persistentemente a construir as instituições do Estado da Palestina. Estão empenhando muito esforço no trabalho de desenvolver e construir uma nova cidade ao norte de Ramallah, limitando os poderes das forças de segurança e ganhando a simpatia e a atenção de governos em todo o mundo.

    E daí? – pergunta o israelense médio. Afinal, os Goyim só estão provando, outra vez, que são antissemitas. Que importância tem o que façam os palestinos? Nós mandamos no território e nenhum truque diplomático pode mudar isso. E enquanto os EUA nos apoiarem irrestrita e ilimitadamente, pouco nos importa quem reconheça o quê.

    Será mesmo? Por muitos anos Israel confiou cegamente nos EUA. Não havia resolução ‘anti-Israel’ que não fosse imediata e firmemente vetada pelos EUA. Mas… isso continua a ser o que antes foi? Quando tantos países importantes do mundo reconhecem o Estado da Palestina – que importância terá que os EUA, sozinhos, jamais reconheçam?

    Enquanto os diplomatas israelenses fazem greve, uma nova iniciativa contra a construção de colônias exclusivas para judeus em territórios palestinos ocupados ganha força no Conselho de Segurança da ONU. Todo o planeta é contra essas construções, que são manifestamente ilegais e contrárias à lei internacional. Até os EUA já pediram o fim das construções. Os EUA conseguirão vetar alguma resolução que manifeste sua própria política, sem se tornarem, os EUA, motivo de escárnio universal? E se correrem o risco, e vetarem, e se tornarem motivo de escárnio universal dessa vez… o que acontecerá da próxima vez, e depois, e depois?

    E se o vetos do EUA controla o Conselho de Segurança – não controla a Assembleia Geral da ONU. Em 1947, foi a Assembleia Geral, não o Conselho de Segurança, que decidiu por na Palestina, lado a lado, um Estado judeu e um Estado muçulmano árabe. Se a Assembleia decidir que é mais que hora de realizar a segunda metade daquela resolução – e estabelecer o Estado muçulmano e árabe na Palestina – estará apenas reforçando o reconhecimento da Palestina que, hoje, já é praticamente planetário.

    Os governos árabes, que muito têm falado a favor da causa palestina, mas até agora não moveram uma palha a favor de ajudar a criar o Estado palestino – devem agora pensar novamente.

    Na Tunísia, o povo levantou-se contra uma ditadura igual a tantas outras ditaduras árabes – uma pequena gangue corrupta, indiferente aos desejos do povo e mais declaradamente ou menos declaradamente sempre ao lado de Israel.

    Durante os 13 anos que Yasser Arafat viveu na Tunísia, visitei-o lá várias vezes. Sempre soube que por trás da fachada liberal e atraente, havia um duro e repressivo estado policial. Mas via os homens tunisianos pelas ruas, com uma flor de jasmim presa atrás da orelha (chamam Shmum), e nunca imaginei que ali, dentre todos os lugares do mundo, brotaria a primeira revolta popular no mundo árabe.

    Pois aconteceu. E na Tunísia. É sinal de despertar para todos os países árabes, do Marrocos a Omã, aviso de que cairão todos os ditadores, de que todos tratem de criar regimes liberais democráticos; e que se não o fizerem, por todos os cantos brotarão regimes islâmicos.

    Está escrito pelas paredes. O atual governo de Israel empurra o país rumo ao desastre. Essa semana, Israel afundou mais um pouco, quando Ehud Barak, Napoleão-de-bolso-de-colete, finalmente deixou cair a fantasia de esquerda social democrática e inventou um partido assumidamente de direita, uma espécie de Likud II – parceiro leal de Netanyahu e Lieberman.

Com esse governo, Israel precisaria de algum outro inimigo?

Uri Avnery é colunista do Gush Shalom [Bloco da Paz]

NOTA DE TRADUÇÃO

1 No folclore judaico, o golem (גולם) é um ser animado, feito de material inanimado, muitas vezes visto como um gigante de pedra. No hebraico moderno a palavra golem significa “tolo”, “imbecil”, ou “estúpido”. O nome é uma derivação da palavra gelem (גלם), que significa “matéria-prima” [mais, em http://pt.wikipedia.org/wiki/Golem].

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