A onda de protestos e mobilizações populares nos países do Oriente Médio traz grandes novidades. Anuncia uma verdadeira reconfiguração da geopolítica regional, que, ao que parece, desloca dos centros de poder a influência dos EUA na região e anuncia a formação de um novo bloco, islâmico e anti-Israel.
As implicações destes acontecimentos para a ordem global são enormes. A começar pela questão de quem controla a exploração e os fluxos comerciais do petróleo. As alianças dos EUA com as ditaduras do Egito, da Arábia Saudita e outros países da região, que asseguravam o suprimento do petróleo, estão ruindo frente às mais amplas mobilizações populares desde muitas décadas. Como num jogo de dominó, as informações que passam de país para país espraiam as mobilizações e contaminam toda a região.
Se por um lado saudamos a queda de regimes ditatoriais, o advento da democracia não está assegurado, questão que se coloca a partir da situação do Egito, onde a transição política está sob controle por parte dos militares. Muito ao contrário, a debilidade das entidades da sociedade civil, fragilizadas e combatidas durante todos estes anos passados nesses países, leva a uma situação inusitada: que forças políticas poderão substituir as ditaduras que caem em razão destas amplas mobilizações populares?
Ao que parece, são organizações religiosas e fundamentalistas que podem ocupar este espaço, com a proposta de criação de Estados islâmicos. É o caso da Irmandade Muçulmana, no Egito, é o caso da província de Al Baida, no Líbano, que se proclamou um emirado islâmico. Esta nova configuração política da região pode colocar Israel em uma situação-limite, em que a opção militar de um ataque ao Irã, por exemplo, se torne imperativa, segundo sua visão.
Todo esse processo de desestabilização política dos regimes autoritários da região se deveu a um fenômeno absolutamente novo, uma dinâmica de mobilizações onde não há partidos políticos, sindicatos ou importantes organizações da sociedade civil liderando. O que há é a internet, o telefone celular, o Twitter, o Facebook, as redes sociais. Alguns tentaram comparar essas grandes concentrações nas praças públicas com o movimento de resistência pacífica liderado por Ghandi, na Índia. Mas onde está o Ghandi dos dias atuais?
Ainda que mesmo durante as ditaduras mais férreas a sociedade civil consiga estabelecer estratégias de resistência, esta passagem da resistência molecular às grandes mobilizações de rua é um processo que possui sempre um elemento detonador, como foi a imolação de um vendedor ambulante ou as mortes de manifestantes, que promovem o que poderíamos chamar de catarse. Mas, depois da catarse, vem a construção da nova ordem e é aí que reside o dilema atual. Ao “dia de fúria” precisa se suceder uma articulação política.
Nunca podemos nos esquecer que a Al Qaeda, na sua origem que remonta aos grupos de resistência à ocupação soviética na região, foi apoiada pelos EUA. E que o apoio irrestrito dos EUA a Israel, assim como sua política beligerante com o Iraque, o Afeganistão, seu apoio a ditaduras locais, moldaram as condições para que a região tenha um profundo sentimento antiamericano e antiocidental e que busque sua unidade em antigos discursos religiosos que recuperam a proposta de um grande Islã.
No entanto, se o novo discurso político que se articula na região busca seus referentes em importantes lideranças religiosas do passado e do presente, quem está nas ruas são jovens que até agora não haviam aparecido na cena pública. Não sabemos o que pensam, não sabemos o que querem. Eles marcam as mobilizações pelas redes sociais, se encontram, se manifestam e não se conhecem.
Desde as primeiras manifestações de massa em Seattle, nos EUA, que em 1999 exerceram pressão sobre o Banco Mundial, o FMI, e se opunham ao neoliberalismo e à globalização dos mercados, vemos crescer o papel e a importância do cidadão comum na vida política do planeta. Os Fóruns Sociais Mundiais, em suas inúmeras reuniões locais, regionais e mundiais, também expressam este processo. Agora este cidadão comum, jovem, sai às ruas, por exemplo, na Grécia, na França, na Inglaterra, na Espanha, na luta pelos seus direitos que estão ameaçados por governos que querem apresentar a conta da crise financeira para toda a população. E a eles se somam os jovens muçulmanos, que nas ruas clamam por liberdade, democracia, justiça social, equidade. É possível pensar que está se forjando uma nova consciência política por parte da cidadania? Ou será que o fundamentalismo islâmico irá obscurecer esse movimento de emancipação política que pode abrir novos horizontes para o futuro da região e do mundo?
Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis. |
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