Por Bruno Cava, Quadrado dos Loucos | Foto: Rodrigo Torres
No começo, tudo era festa. E pediam à acampada mais do que ela poderia dar: uma emoção contínua, um encantamento permanente. Generosidade transbordante, sorrisos por todo lado, grupos de amigos resolvem ir juntos à praça. Contagiado pelos afetos proliferados pelo mundo, mesmo o mais calejado ativista apaixonou-se. E com razão. No grande amor da política, vivenciou uma experiência do comum, ao mesmo tempo militante, ética e estética. Mundivivência de novos tempos. Esses que temos fome de viver, mas deixamos para depois por receio ou preguiça. O avião vai embora e ficamos na plataforma, esperando. Isso mudou. Milhares atravessaram a praça, debateram, consentiram e dissentiram, ordenaram e desordenaram. Dançaram como piões frenéticos e se consumiram num brilho azul e intenso, como diria Kerouac.
Não pode haver transformação sem bloco de rua. Orientar o movimento, organizar o carnaval. É muito político. Bem mais que grupelhos a discutir revolta e socialismo em obscuras salas em domingos ensolarados. Ou que opinólogos da revolução, com seus textos patrulheiros, seu rancor de velha esquerda. Ou aparelhos partidários ou carreirismos que nem encher a barriga, enchem. Aos 30 anos, a vesícula não aguenta mais. É fazer ato disso, moção daquilo, ter opinião engajada sobre tudo, demonizar e vociferar, mas nada de construir a alternativa, de afirmar um outro mundo. Assim, o anticapitalismo acaba sendo um slogan para a má consciência da classe média e se resolve em vagas indignações por um mundo melhor. Mais que isso, a rede de ocupações globais confabula um outro mundo, na democracia real, na organização política das relações.
Aí, a OcupaRio passou da fase de seus dias de festa. Escancarada aos fluxos da cidade, inundou-se do conflito, do racismo, das drogas, da incomunicabilidade, da violência difusa e direta. Desde o primeiro dia, a brutalidade é iminente. Mais perigoso que a Guarda ou a PM, tem sido esse conflito epidérmico que tensiona a acampada dia e noite. Cinelândia: lugar de mobilizações históricas, mas também onde chicoteavam os escravos, enforcavam os condenados, onde hoje se esparramam, arredios, os micróbios e nóias e criaturas invisíveis do centro.
Também, o otimismo precisa se desencantar. Embora muitas vezes alegre, a luta culmina sempre inglória. Que não se esperem louros ou gratificações, nem mesmo morais.
Com um mês, tem um elefante na sala que não dá mais para contornar. Findo o encantamento inicial, esse elefante exige a atenção quase total. Chamam de “moradores de rua”. São eles que conferem substância e duração ao movimento Ocupar no mundo todo. Porque suportam a aspereza do concreto e sobrevivem na metrópole. Mas é uma classificação injusta. Porque grupo heterogêneo, são muitas as naturezas e singulares as histórias. Nós precisamos de teoria e ideologia para fazer política, para subjetivar-se como agentes da história. Eles, não. Trazem o choque de ordem na pele, o trauma nas falas e gestos. Já vivenciam politicamente todos os dias nos corpos, nos discursos, nos atos mais prosaicos como beber água ou ir ao banheiro ou dormir. Tudo para eles é geografia política, é narrativa oprimida, é resistência contra e apesar de tudo. Sua poética sem bom tom parece-nos irremediavelmente improdutiva. Nutrimos preconceito num nível profundo. Não são _o_ problema, mas um sintoma da pólis como um todo, muito além da questão da moradia. Ganhamos o foco.
Com eles, a OcupaRio vai sangrar até a morte? Ora, as veias da América do Sul sempre estiveram abertas. Ser derrotado, ser soterrado pela materialidade é menos crítico do que fugir, do que voltar aos apartamentos e salas de aula e corredores do poder. Seria renunciar ao que de revolucionário há na composição de classe. Se a esquerda civilizada e progressista não cessa de tentar proletarizar as pessoas no Povo Brasileiro, neste continente pulsa um povo macunaímico, índio e negro, que do limiar dos séculos recusa ser proletário. A mistura grossa que se fez na Cinelândia não acontece em praticamente nenhum espaço ou organização de esquerda. Ali, sim, estamos os mal representados, mas também aqueles que não são representados de jeito nenhum, senão comoobjetos para a psiquiatria, a criminologia, a assistência social. Aqueles bárbaros que rejeitam se tornar representações. Na acampada, estamos descoisificando: produz-se subjetividade.
Enquanto isso, os casmurros seguem demandando que tenhamos uma pauta inequívoca. Sua condescendência nas entrelinhas não é suficiente para camuflar o desprezo que sentem pelo novo. E escalam o seu desdém até a hora de passar o veredito. Pretendem domesticar-nos, identificar-nos com o Eu deles, avaliar se é anticapitalista o suficiente, se merecemos o seu ok crianças. Mas quando a novidade é um acinte, a geração está fazendo a coisa certa. O avião foi embora e eles deitaram na plataforma, esperando. Adeus, senhores.
É fato, se está até o pescoço de impasses, questões e limitações, mas o modo como pensar e agir pra enfrentar esses problemas é que define a verdadeira luta e experiência das acampadas. Que o conflito apareça, eis uma grande qualidade, mas maior ainda será desenvolvê-lo de um modo transformador. É ingenuamente anticapitalista quem pensa que são questões secundárias, que é mais premente encenar (ainda) outro ato contra Paes-Cabral-e-Dilma, nesse teatro enfadonho de grandes medalhas. Quando tudo está em jogo precisamente aí, onde a democracia se defronta com a realidade das ruas, diante do abismo ético onde o Eu encontra o absolutamente Outro, — este que não pode ser reduzido ao Eu.
Hoje, trinta dias depois, sabemos pedir menos do que a acampada pode dar: uma tentativa franca de reinvenção, um trabalho de formiguinha. Trinta dias na louca Cinelândia tem sido uma aposta louca e inevitável. E os seus afetos, a sua vivência, os seus gestos mantêm a olhos lúcidos o autêntico valor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário