terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Drogas e violência: uma questão de classe


    Com mais de três décadas de profissão, o jornalista Caco Barcellos já subiu muitos morros no Rio de Janeiro e viu de perto a realidade das periferias de São Paulo. Autor de dois livros que relatam os abusos policiais e a vida dos traficantes, acredita que a desigualdade de renda é o ponto-chave do sucesso do tráfico.

por Maíra Kubík Mano
Le Monde Diplomatique Brasil

DIPLOMATIQUE – Como jornalista, você já vivenciou a realidade nos morros do Rio de Janeiro e na periferia de São Paulo. Por que o sistema de segurança pública não tem credibilidade, tanto para as classes média e alta quanto para as mais baixas?

CACO BARCELLOS – Historicamente, o Estado lida com a questão da violência com preconceito, principalmente de classe e de raça. As barbaridades, o arbítrio e a execução extrajudicial que se verificam todos os dias contra os mais pobres nunca são vistas contra os mais ricos. Eu trabalhei sete anos em São Paulo identificando as vítimas da violência e nesse período encontrei apenas três pessoas de classe média alta, ninguém mais. Já em relação à raça, em um estudo que fiz concluí que a maioria dos mortos nesse conflito era formada por negros e pardos, conforme a definição da Polícia Militar (PM). Ao mesmo tempo, a maioria dos criminosos condenados pela Justiça são brancos, sejam eles assaltantes, traficantes ou assassinos. Se houvesse uma coerência, uma lógica na violência policial, seria de se esperar que a maior parte dos condenados também fosse formada por negros, mas não. Isso significa que os policiais perseguem as pessoas erradas. Sem dúvida há um preconceito de raça e os soldados são orientados dessa maneira.

DIPLOMATIQUE – Por que a polícia parte desse ponto de vista? Isso tem a ver com a má formação e com os baixos salários? Ou os policiais se impõem pela violência porque não veem outro jeito?

CACO BARCELLOS – Isso vem de muito tempo, não dá para atribuir a culpa ao governo de agora ou ao imediatamente anterior. Quando eu comecei na profissão, durante a ditadura militar, acreditava que a violência exagerada fosse decorrência do regime de exceção, mas estava enganado. Depois que esse período acabou o país se democratizou em vários aspectos, mas na área da segurança pública a situação só piorou. Passamos por gestões de direita, por uma mais de centro e por outra de esquerda e as coisas não se alteraram muito. Há épocas em que a violência é mais concentrada em um estado, depois muda para outro, sem haver uma lógica de causa e efeito associada ao governo federal. Talvez exista um pouco mais de relação com os poderes estaduais, mas de qualquer forma a solução do problema não é possível em apenas uma gestão de quatro anos como governador.

DIPLOMATIQUE – Eu ouvi alguns depoimentos de pessoas dizendo que na favela o traficante consegue, de certa forma, evitar a violência da polícia e que isso é bom para comunidade. O que você acha?

CACO BARCELLOS – Eu discordo. Acho que o traficante reproduz a violência que aprendeu nas mãos da polícia, como sua vítima. Afinal, em algum momento ele foi torturado e preso. E se teve a sorte de não morrer até os 20 anos, virou um líder ou cresceu na hierarquia do tráfico e reproduziu aquilo que aprendeu. A tortura mostrada pelo filme Tropa de Elite é muito semelhante àquela que o Esquadrão da Morte da Polícia Civil do Rio de Janeiro já praticava nos anos 1970, quando foi denunciado pelo deputado Hélio Bicudo. Primeiro vem a tortura, depois a execução. Os métodos são muito parecidos e, infelizmente, o matador quase sempre é vinculado ou próximo ao Estado. São ex-policiais ou agentes polivalentes, que usam uma farda durante parte do dia e praticam atividades oficiosas no restante do tempo. Os matadores antes estavam concentrados nesse segmento paramilitar e eram tidos como inimigos das comunidades mais pobres. Quando eram presos, também não sobreviviam muito tempo nas cadeias. Com a evolução do crime, com a banalização da violência, é muito simples observar que eles hoje estão presentes em todas as cidades. Eu me lembro do tempo em que entrava nos presídios de São Paulo e de alguns outros estados brasileiros e eles estavam confinados, assim como os religiosos, sobretudo os evangélicos, e os estupradores. Os evangélicos porque gostavam de ficar separados dos demais. Os estupradores porque não iriam sobreviver, seriam linchados. Da mesma forma ocorria com os matadores. De repente eles se tornaram uma grande força nos presídios e estão na direção das organizações criminosas, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro. É um fenômeno que começou há pouco mais de dez anos.

DIPLOMATIQUE – Há um senso comum sobre o tráfico substituir o Estado dentro das favelas. Você acha que existe semelhança entre a forma de organização da sociedade brasileira em geral e a das periferias, sendo estas últimas um microcosmo da primeira?

CACO BARCELLOS – Eu acho. Sobre isso, existe um estudo muito interessante feito por um policial britânico que também é acadêmico. Ele foi contratado pelo governo para examinar soluções possíveis para a violência. Seu trabalho se baseou em cerca de 600 traficantes da cidade inglesa de Nottingham. A partir desse grupo, ele investigou o perfil do traficante e concluiu que há grande semelhança deste com os executivos das transnacionais. Isso, inclusive, foi antes da crise, que levou as pessoas a pensarem melhor sobre a questão do fenômeno do lucro acima de tudo. O horizonte de ação desses executivos é muito estreito, nele não existe futuro, apenas o lucro acima de qualquer coisa. A única diferença em relação aos traficantes é que um tem uma atividade legal e o outro ilegal, mas a ambição é a mesma e a forma como se relacionam com os subalternos também. Por exemplo: usam o menor número de servidores possível e com o salário no limite. É a hiperconcentração dos lucros com a utilização de qualquer mecanismo de viabilização, seja este eticamente aceito ou não. O traficante faz exatamente isso: usa a mão de ferro e a arma para impor o terror porque lhe é conveniente. De alguma maneira ele cuida da disciplina de seus subordinados, mas pensando no consumidor, que não pode ser abalado por uma instabilidade na região das vendas. Enfim, é tudo aquilo que se observa na ação de um executivo, que segundo o estudo britânico são os mais selvagens.

DIPLOMATIQUE – E para ambos é interessante que o Estado continue assim.

CACO BARCELLOS – Sim, é o discurso de que o Estado não pode interferir no mercado. Em momentos de crise, na hora de dividir o prejuízo, os executivos rapidamente viram comunistas. Mas para dividir o lucro, são bem capitalistas.

DIPLOMATIQUE – Muito se falou nos crimes dos executivos, como o do americano Bernard Madoff, mas poucos foram condenados. E quando presos, eles recebem outro tratamento.

CACO BARCELLOS – Os indivíduos desonestos e endinheirados têm um tratamento correto, não sofrem um arranhão. Mesmo aqueles ligados ao tráfico. Uma ação correta nesse sentido é mais frequente na Polícia Federal, que trabalha antes, investiga e tem um corpo de profissionais que gostam do que fazem, são mais bem remunerados e têm melhor formação, ou seja, acabam tratando os prisioneiros de forma diferente. Por isso eu acho que o ponto é o preconceito de classe. Claro que há vários componentes que explicam isso, mas o mais grave é o preconceito de classe. Quando escrevi o livro Rota 66, que é sobre a violência da polícia, eu discuti muito com os matadores da PM. Eu dizia: “Não consigo compreender. Vocês reproduzem aquilo que fazem contra vocês mesmos, os pobres. Qual é o sentido de fazer isso? Aponte-me um industrial, um gerente de banco, um banqueiro ou um profissional liberal desonesto que você tenha matado. Como é que se explica isso?” Não que eu desejasse que eles matassem os mais endinheirados e desonestos, mas é um absurdo adotar uma postura totalmente oposta contra os mais fracos, os da sua classe social. Além disso, ninguém nunca vê um matador, seja soldado ou coronel, que assume o que faz. Eles não assumem. Pergunte o que pensam sobre pena de morte e eles vão dizer que são contra, defenderão a lei. Mas estamos em um país que tem certa vocação para a ilegalidade. Somos um país democrático, mas não praticamos a democracia no que ela tem de melhor. Somos contra a violência e atribuímos sempre ao outro a violência que nós mesmos praticamos – eu digo “nós” em qualquer classe social. Há uma tendência a não assumir os erros, não refletir sobre eles, não buscar uma solução. Sempre escolhemos uma saída mais simplista ou escondemos o problema debaixo do tapete. Achamos que “não está nos atingindo” e seguimos em frente até o dia que atingir.

DIPLOMATIQUE – É um valor individualista.

CACO BARCELLOS – Mas nós nos tornamos uma sociedade individualista demais.

DIPLOMATIQUE – Você acha que a solução passa por uma refundação da sociedade?

CACO BARCELLOS – Eu acho que é uma questão de estudo e de foco. O preconceito de classe é grave em qualquer segmento. Imagine essa questão na cabeça de um traficante, com todas as armas que ele pode comprar. Parece-me que as pessoas não se dão conta ou não dão a devida atenção para esses valores estão presentes em todos os segmentos, inclusive na forma como as autoridades estruturam o combate à violência. Deixar de fazer o errado já seria uma grande solução. Para mim é simples deixar de fazer o errado, o difícil é fazer o correto, precisamos estudar e ver qual seria a maneira. Esconder o erro ou não reconhecê-lo não adianta nada. O governo do Rio de Janeiro, por exemplo, que hoje é o que mais mata, não reconhece essa situação: não admite que, no ano de 2007, 1.350 pessoas foram mortas pelo Estado.

DIPLOMATIQUE – E são execuções sumárias, na maior parte.

CACO BARCELLOS – Na maior parte sim. Mas ainda que todas as vítimas fossem legítimas, ou seja, que elas morressem em tiroteios iniciados pelos criminosos, em que a polícia apenas reagisse, ainda assim o índice é muito alto. Se o compararmos com os de países que praticam a de maneira legal, cerca de 70 nações, veremos que no mesmo período esses Estados executaram 1150 pessoas. Em 2007, a China, sozinha, registrou 600 mortes e foi considerada o país mais intolerante do mundo. Como uma autoridade não reconhece que a situação no Rio de Janeiro é gravíssima?

DIPLOMATIQUE – Sem o tráfico de drogas e de armas a situação seria essa também? Ou isso tudo está diretamente vinculado?

CACO BARCELLOS – Eu acho que está diretamente vinculado, mas eu não sei qual seria a medida. De alguma maneira, há dinheiro envolvido. Ainda que seja pouco, se pensarmos em outros segmentos sociais, é uma quantia muito significativa para a realidade da comunidade da favela. No Rio o tráfico é o único produto com valor no morro.

DIPLOMATIQUE – Mas se a droga fosse legalizada, como é o caso do álcool e do cigarro, talvez isso passasse por outros parâmetros.

CACO BARCELLOS – Eu acho que não iria eliminar a violência, mas pelo menos transformaria um grupo grande de traficantes em comerciantes. No caso da maconha acho que seria simples, mas cocaína já é mais complexo. Como é que eu, farmacêutico, vou comprar cocaína para vender se eu não produzo no meu país? Como é que nós venderíamos a cocaína comprada na Colômbia, que é ilegal e continua sendo devido a esse interesse americano no país? Eu acho difícil. Já a maconha é produzida em Pernambuco e na Bahia. Parece-me mais simples, mas eu também não sou a pessoa mais correta para responder.Eu nãovejo sentido nessa repressão toda ao comércio de drogas; se você quiser cheirar sua cocaína é problema seu, desde que você não faça dessa prática crime. O problema é o crime, não o consumo.

Há dez anos eu acompanhei um exemplo muito interessante nos Estados Unidos. Um juiz do condado de Dade trabalhou um ano a serviço do governo buscando uma solução para os assaltos a banco na comunidade. Ele descobriu que os assaltantes eram usuários de cocaína e, na maior parte, desempregados que recebiam um salário-benefício do governo de aproximadamente US$ 900. À época, era uma renda suficiente para tocar a vida. Mas o hábito de usar cocaína impunha a necessidade de ter mais dinheiro e por isso eles assaltavam bancos. A conclusão do juiz foi: “Eu tenho que fazer com que esse cara cheire menos ou que, no mínimo, o dinheiro do salário dele seja suficiente para seu consumo”. Então ele descobriu a solução do combate ao crime no condado dele: chama-se acupuntura. A partir daí, na medida em que o sistema prendia um assaltante de banco, ele o condenava à pena de dez a 12 anos de cadeia, a depender da natureza do crime. Durante uma semana lá, eu assisti a cerca de 50 desses julgamentos. O juiz dizia para a pessoa que estava condenando: “Você tem duas possibilidades de cumprir essa pena. Pode escolher a sua casa ou a cadeia”. Na hora o prisioneiro não entendia bem e ele esclarecia: “Se você quiser entrar num programa que eu vou te explicar agora, você fica na sua casa. Mas tem que cumprir rigorosamente as regras. Se descumprir, te mandarei para a cadeia”. Todo mundo evidentemente optou pela casa, com exceção de um. A regra era simples: passar duas vezes por dia numa clínica de acupuntura. A cada 20 dias eles deveriam voltar e bater um papo com o juiz. Na primeira ou na segunda vez já era perceptível que o consumo havia diminuído. Se a pessoa chegasse a consumir apenas 10% do que fazia antes, e sua renda permitisse manter esse nível de compra de cocaína, o juiz dava alforria ao condenado. No começo ele foi chamado de amigo dos bandidos– discurso recorrente também no Brasil. Mas quando a sociedade descobriu que os assaltos no condado haviam caído em 80%, concordou que era muito mais barato o Estado prover o tratamento da acupuntura do que manter o camarada preso. Como o americano adora pensar pelo bolso, esse juiz virou um herói. Essa experiência foi reproduzida em outros 300 lugarejos. É para lugares pequenos, onde é possível acompanhar de perto a atividade dos condenados, mas trata-se de um exemplo de inteligência no combate ao crime.

DIPLOMATIQUE – É uma solução.

CACO BARCELLOS – Uma delas. Pode-se pensar em muitas outras que fujam desse entendimento de que a solução é matar o indivíduo.

DIPLOMATIQUE – Eu fiquei impressionada com um relato que você fez no seu último livro, Abusado, sobre o depoimento do Juliano [codinome Marcinho VP] no Congresso Nacional. Ele fala que 80% das pessoas que entram no tráfico o faz porque não tem outra opção, e tenta discorrer sobre o assunto, mas não é ouvido por aqueles que, teoricamente, estavam lá para entender a questão. É isso mesmo, ninguém ouve?

CACO BARCELLOS – É isso mesmo, nós não ouvimos. Se fosse possível seguir os repórteres dos grandes veículos de comunicação, todos, sem exceção, para ver de onde fazem a cobertura, concluiríamos que eles não vão para o alto dos morros ou para as periferias das grandes cidades. Recentemente eu fiz uma matéria sobre presídios e encontrei apenas um juiz corregedor que entra nas cadeias. Os homens da Justiça em geral não entram e não sobem o morro, não vão conversar com aquele que deve ser o objeto maior do interesse deles: o criminoso. Como é que vamos combater o criminoso se somos ignorantes sobre o universo dele? Eu tive a oportunidade de conviver na comunidade Santa Marta e constatei que eles são mais bem informados do que as pessoas ditas mais cultas no Brasil. Quem mora no morro conhece as duas realidades porque sai de lá para trabalhar. Das famílias com quem conversei e que moram na zona mais nobre do Rio, nenhuma havia um dia sequer na vida subido o morro, mesmo que fosse para conhecer o filho de sua empregada doméstica, a segunda mãe dos privilegiados. Eles ignoram totalmente a realidade dos mais pobres.E, salvo engano, os traficantes com quem eu conversei eram todos filhos de empregadas domésticas. E eles se queixavam do fato de os bacanas do asfalto terem duas mães, e eles, nenhuma. E é uma realidade dura se dar conta de que não se tem mãe ou que ela está praticamente em uma situação de escravidão, pois fica fora de casa de segunda-feira a sábado e ainda recebe um salário que não traz benefícios para a família. O mesmo acontece com o pai que está no mercado. Esses jovens veem no crime a chance de ganhar dinheiro e não querem repetir a trajetória do pai trabalhador. Essa eles já sabem onde vai dar.

Maíra Kubík Mano é jornalista e editora de Le Monde Diplomatique Brasil.

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