O dia de Zumbi dos Palmares deveria ser uma data para comemorar a auto-estima. Para celebrar a conquista da cidadania de cada brasileiro excluído, como os negros, os índios e os pobres. Mas, já passados 122 anos da abolição, ainda se busca estabelecer as diferenças pela cor da pele
por Emanoel Araujo
Sou Negro (Solano Trindade 1908/1974)
Sou negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh`alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gongôs e agogôs
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor de engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu
Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou
Na minh`alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação
Neste ano da graça de Deus de 2010, já se fazem mais de 122 anos da abolição da escravatura no Brasil. E como é de se esperar, uma pálida comemoração deve ecoar pelo país afora. De fato nada se tem a come-morar diante do tão pouco avanço nas relações de trabalho e dos direitos dos cidadãos negros a uma situação social e cultural que corresponda aos anos de sacrifício dos nossos antepassados dedicados a construir este país.
E se hoje o Brasil se projeta com grandes perspectivas no presente e com um futuro mais promissor ainda, é preciso que se lembre que houve, no passado não muito distante, milhões de homens, mulheres e crianças sacrificados neste solo pátrio, triturados e esmagados pela sólida instituição escravocrata. Outros milhões de almas não chegaram até aqui por-que morreram na infame travessia e repousam no fundo do Oceano Atlântico, o verdadeiro túmulo dos que não tiveram a má sorte de pisar, acorrentados, em Vera Cruz. Não irrigaram com seu sangue estas terras férteis, como assim fizeram aqueles que aqui viveram, no afinco de deixar consolidada uma nação, uma identidade nacional, na formação da língua, da música, das artes, dos hábitos alimentares, nos costumes, na esperança e no afeto que mobiliza a felicidade.
Essa sangria seguramente foi o maior genocídio da humanidade, praticado contra um continente inteiro. Desde o século XV exploradores e ne-greiros europeus varreram aquelas civilizações africanas em busca do ouro, do conhecimento de suas culturas. Por fim, brasileiros e até africa-nos se envolveram no grande negócio de escravizar seus filhos e irmãos para sustentar a colonização e o desenvolvimento das terras descobertas do lado de cá do Atlântico, banhando assim de sangue as Américas.
No Brasil, primeiro foi o gado que corria solto da Bahia até o Piauí, em seguida veio a cana-de-açúcar dos milhares de engenhos do Nordeste, depois o ouro das Minas Gerais e Goiás, as pedras preciosas das Diamantinas, o fumo do Recôncavo Baiano e o café do Rio de Janeiro e São Paulo – tudo isso não só sustentou o Império brasileiro como foi o esteio da velha República. E assim foi construída esta nação: sobre os ombros do trabalho escravo, trabalho que não só foi produzido nas fazendas, mas na lida diária das cidades, nas casas-grandes, nas ruas vendendo para seus senhores. As mulheres converteram-se em amas-de-leite, amantes na iniciação sexual dos seus sinhozinhos, parideiras, parteiras, doceiras e um sem-número de deveres; os homens atuaram como pedreiros, ferreiros, entalhadores, pintores, escultores, músicos etc., todos negros, todos escravos, todos a serviço da aristocracia e das oligarquias da terra.
E o que receberam de volta? O esquecimento, o abandono, a periferia, a favela, o estigma da escravidão que até hoje lhes impede o desenvolvi-mento, em pleno século XXI, no início do terceiro milênio. Já passados mais de 120 anos da tal abolição, ainda se busca estabelecer as diferen-ças pela cor da pele. É urgente reivindicar educação, trabalho, saúde e igualdade racial.
Quando esta sociedade irá se convencer do mal que ela própria praticou e dos estigmas que criou por não reconhecer a dívida desse passado de mais de 400 anos? Hoje se torna imprescindível buscar de alguma forma restituir a nosso povo a dignidade contra as mazelas da inconsciência humana. Necessário e urgentíssimo se faz, aí sim, que a consciência de cada brasileiro possa se empenhar em devolver a cada ser excluído este futuro que se apregoa promissor, mas que ainda não chegou para milha-res e milhões de cidadãos brasileiros.
Para não assistirmos mais, indignados, às campanhas desses senhores, blasfemando o que não sentiram na pele, sentados nos seus tronos, opi-nando contra as cotas de negros e índios nas universidades, que no Bra-sil são para poucos privilegiados; para que livros sobre como não “somos racistas” não encobertem mais as estatísticas internacionais que apontam o Brasil como o país mais preconceituoso das Américas, defendemos as ações afirmativas: pela igualdade racial, pelo extermínio do trabalho escravo que ainda campeia solto nas mais longínquas regiões deste imenso país. Que cada brasileiro se conscientize e seja um vigilante dos jargões preconceituosos ainda vigentes no nosso cotidiano, na mídia e nos falares de muita gente, como “negro de alma branca”, “dia negro” ou “nuvem negra”, ou quando se associa a palavra “negro” ao que há de mal, ou de ruim, assim como outras expressões ainda mais danosas como “samba do crioulo doido”, frase criada – perversa ou ingenuamente – pelo cronista Stanislaw Ponte Preta e que se tornou símbolo do preconceito expresso em letra de um samba-enredo de uma escola de samba do carnaval do Rio de Janeiro.
O Dia da Consciência Negra não pode se perder nas comemorações in-conseqüentes de festividades vazias. Nem deve ser apenas uma data no calendário de efemérides. Deveria ser uma data de perguntas. Como e por que o atraso, a pobreza e a ignorância ainda perturbam tanto a nossa consciência? Por que ainda as gentes do Brasil sofrem de fome e de falta de educação num país tão extenso e rico como o nosso?
Esse dia deveria ser uma data para comemorar a auto-estima. Para comemorar a conquista da cidadania de cada brasileiro excluído, como os negros, os índios e os pobres. Nesse dia deveriam ser vistos, refletidos no espelho dos pais, a cara de todos os seus filhos negros, mulatos, morenos, roxinhos e os milhares de tons dessa mistura racial que representa de fato e de verdade o ser brasileiro, que faz disso tudo uma nova raça. Uma nova raça forjada com a sua própria força, nascida aqui em terras americanas.
Passado e presente, homens e mulheres, brasileiros como Henrique Di-as, o Governador dos Negros na expulsão dos holandeses de Pernambuco; como as centenas de negros na guerra da Independência da Bahia; do pelotão de zuavos baianos na Guerra do Paraguai do capitão Marcolino Dias; do pelotão de negros na Revolução Paulista de 1932, na Batalha da Chibata de João Cândido; do primeiro editor Paula Brito; do poeta Luiz Gama; do engenheiro Teodoro Sampaio; do poeta simbolista Cruz e Souza; do primeiro psiquiatra brasileiro Juliano Moreira; da família Rebouças; do palhaço Benjamim de Oliveira; do músico José Mauricio Nunes Garcia; do caricaturista e cenógrafo Crispim do Amaral; do defensor e grande batalhador da causa da abolição José do Patrocínio; do bispo D. Silvério Gomes Pimenta – para citar alguns brasileiros que deveriam ser conhecidos de todos e dos milhares de negros, anônimos, aos quais devemos nossa continuidade. Este dia, 20 de novembro – Dia da Consciência Negra – é para lembrar o mais indignado dos afro-brasileiros, Zumbi dos Palmares.
E por tudo isso, afinal, essa data deveria se transformar no Dia da Consciência Nacional. Para efetivar de uma vez por todas que essa gente de pele morena, dessa mistura de raças, se mobilize e tenha como eixo ético a cidadania, a igualdade de todos. Para que possamos olhar, como gênero humano, o que significam as gentes do Brasil, fruto deste belo, tropical e colorido país da América do Sul.
Emanoel Araujo é curador do Museu AfroBrasil.
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