A violência de gênero atinge mulheres brasileiras de Norte a Sul do país, de todas as classes sociais, etnias, credos, raças e opção sexual. Seja por culpa do sistema patriarcal, seja pela falta de debate sobre o tema, o fato é que uma mulher é espancada a cada 15 segundos e dez são assassinadas diariamente no Brasil
por Maíra Kubík Mano, Mariana Fonseca
Juliana** é paulista e viajou para Minas Gerais, onde iria fazer uma prova. Na noite anterior, decidiu dar uma volta pela cidade onde estava e parou em um bar. Conheceu um rapaz “inteligente, charmoso e com boa aparência”. Juliana acordou num hotel, no dia seguinte, sem lembrar de nada além da cara simpática do moço. Mais uma vítima do “Boa noite, Cinderela!”. Com vergonha, ela voltou para casa sem contar nada para ninguém. Mas, três semanas depois, a menstruação não veio e ela descobriu que estava grávida do estuprador. “Contei para a minha família. Menos para o meu irmão. Eles me deram apoio e eu procurei ajuda em um hospital.” Juliana estava à porta da 1ª Delegacia de Defesa da Mulher, no centro de São Paulo, para fazer um boletim de ocorrência do estupro. “Faço o aborto ainda esta semana e preciso do B.O. Sempre fui contra o aborto, hoje sou a favor.” Juliana vai interromper a gravidez dentro do hospital, por aspiração, já que seu caso se enquadra na lei e tem menos de 12 semanas de gestação. “Acho muito perigoso essas mulheres que fazem aborto clandestino. Elas compram o remédio por R$ 350 aqui, no centro da cidade, e correm muitos riscos.”
Laura** também está na fila para ser atendida pela delegada. Quando questionada sobre o que a traz ao local, a resposta é enérgica: “Fui traída”. Ela exibe os braços roxos e começa a despejar a história, com revolta. Laura está casada há quatro anos e tem uma filha de 6 meses. Na noite anterior, descobriu que estava sendo traída pelo marido e tentou expulsá-lo de casa. Ele a agrediu no hall do apartamento. “Ele tentava me arrastar para dentro de casa para me bater mais, mas por sorte os vizinhos apareceram e ele foi embora.” Essa não era a primeira agressão do marido. “Quando namorávamos, ele já tinha me agredido na frente da minha sogra. Sempre soube que ele era violento, mas ficava quieta, mesmo quando ele me humilhava em público, falando coisas horríveis.” Por que Laura se casou e manteve uma relação com esse homem? “A gente ama e vai deixando rolar, achando que as coisas vão mudar. Mas, agora que sou mãe, tenho outras priori-dades.”
Maria**, de São Paulo, procura ajuda porque seu marido ameaça matá-la caso ela saia de casa. Ela quer se separar, mas ele não quer perdê-la. Depois de muitas brigas e maus-tratos, Maria até chega a avisar que, um dia, é ela quem vai se rebelar e dar uma facada nele, seguindo a regra do “sou eu ou ele”. Mas ela não consegue fazer um boletim de ocorrência porque não existem testemunhas das ameaças. O marido negocia, então, a saída dela de casa: quer R$ 8 mil para deixá-la em paz. Nem agressões, nem dinheiro, Maria pula a etapa do B.O. na delegacia e consegue ser ouvida por um promotor bem-intencionado. Com a autoridade que lhe é garantida, o promotor intima o marido agressor. Com uma boa conversa, ele deixa a residência. Maria é, finalmente, uma mulher separada, livre e, principalmente, em paz.
Enquanto isso, em Roraima, mais especificamente na cidade de Alto Alegre, a história se repete. A mulher quer se separar, mas o marido não concorda. Ele faz ameaças e pressão psicológica. Ela insiste em deixá-lo e acaba agredida. Quando a violência começa a ficar insuportavelmente frequente, ela toma coragem e vai denunciá-lo. Essa é a versão mais comum que a psicóloga do Centro de Referência da Assistência Social da prefeitura da cidade, Beth Urbano, escuta no seu dia a dia no abrigo para mulheres. Por lá, o número de mulheres mortas é de 22 por 100 mil habi-tantes, o maior índice do país, segundo dados recém-divulgados pelo Mapa da Violência no Brasil 2010. O estudo contabilizou 41.532 vítimas do sexo feminino entre 1997 e 2007, uma média de 10 mulheres assassinadas por dia (ver fim do texto).
Urbano conta que são feitas palestras para as mulheres e, principalmente, para os homens do município. Porém, é difícil manter o interesse do público masculino. “Tentamos dar brindes, como kits para moto e bicicleta. Achamos importante que eles reflitam sobre o tema, mas não é fácil.” Para a psicóloga, o número alto de assassinatos não é fruto de nenhuma onda crescente de violência. “A violência continua a mesma de sempre, a diferença é que agora as mulheres estão tendo mais coragem de denunciar. Muito graças à Lei Maria da Penha, que levantou o assunto em todo o estado. A própria Maria da Penha esteve palestrando por aqui. As mulheres passaram a conhecer melhor os seus direitos. As coisas pararam de ser camufladas e as mulheres per-deram um pouco o receio de se expor. Acredito que se todas elas superassem o medo das ameaças, os números seriam ainda mais altos.”
E uma coisa é certa em se tratando de violência contra a mulher: ela não discrimina classe social, faixa etária, etnia, opção sexual, credo nem cor. “Os casos atingem mulheres em geral, sem recortes. É uma questão bem mais complexa, que envolve criação e comportamento social. Os agressores também são fruto do meio.” A própria Maria da Penha que o diga: farmacêutica, sofreu duas tentativas de assassinato pelo marido, um professor universitário, em 1983. A primeira, com arma de fogo, deixando-a paraplégica; e a segunda, por choques elétricos e afogamento. Contudo, ele só foi punido depois de 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos cumprindo pena em regime fechado. Não é à toa, portanto, que a lei mais dura contra esse tipo de crime leve seu nome.
A violência também não discrimina região do país e/ou facilidade de acesso a informação. Além de Roraima, entre as dez cidades mais violentas figuram três do Espírito Santo (Serra, Jaguaré e Viana), duas do Rio de Janeiro (Silva Jardim e Macaé), duas do Pará (Tailândia e Rio Branco do Sul), uma do Mato Grosso do Sul (Amambai) e uma de São Paulo (Monte Mor). De acordo com Márcia Salgado, delegada coordenadora das delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo, os casos mais frequentes são de lesões corporais e ameaças. “Em 2009, foram 215.201 atendimen-tos no estado, contra 195.163 do ano anterior”, aponta.
Violência de gênero
Para ter um olhar mais amplo da situação da mulher no país é preciso entender o que é violência de gênero. A feminista e ativista de Direitos Humanos, Amelinha Teles define: “Violência de gênero é aquela que se dá porque existe uma desigualdade histórica entre homens e mulheres, uma desigualdade nas relações de poder que atinge todas as áreas econômicas, políticas, sociais e religiosas”.
E assim como a psicóloga de Alto Alegre, Teles também alerta para o fato de que a violência de gênero é assunto comum, quotidiano. “Não há nada de extraordinário em mulheres sofrendo agressões ou sendo mortas simplesmente por serem mulheres. Infelizmente, esses são fatos corriqueiros. Se estão na pauta, hoje, e se a mídia fala do assunto é porque existem exemplos que atingem pessoas com certa fama.”
Teles critica a cobertura de casos como o do goleiro do Flamengo, Bruno Souza, e Eliza Samudio ou o da advogada Mércia Nakashima. A feminista alerta para matérias veiculadas na imprensa envoltas em preconceito. “Houve uma overdose de cobertura que, em sua grande maioria, refor-çava o estereótipo dos homens violentos. Não vimos muito espaço para outra perspectiva na discussão sobre a violência contra a mulher. Muitos criminalistas foram entrevistados, mas quase nenhuma feminista ou ativista que lida com esses casos no dia a dia. Nós falamos nesse assunto há 30 anos e, até hoje, mesmo mulheres que não sofrem violência direta vivem temerosas de sair à noite, de andarem sozinhas e ser estupradas.”
Se, por um lado, Teles questiona a cobertura dos casos recentes, por outro, acredita que o desta-que dado pela mídia e o movimento gerado em torno da Lei tenha surtido efeito. “A Lei Maria da Penha, por levar o nome dessa mulher cadeirante e que está entre nós, tem uma força muito grande. Ela levantou a pauta e fez pessoas comuns discutirem o tema nos mais diferentes cantos do país.”
Para a feminista, a Lei, que faz quatro anos este mês, é bastante completa, de fácil compreensão e atende às demandas. “A Lei tira a mulher da condição de crime passional, do papel de coitadinha. A mulher é tratada como uma pessoa digna. Não é que a Lei coloca todo mundo na cadeia, como se fala por aí, mas o que ela propõe é orientar a vítima e mostrar que ela tem direitos. Que é possível criar medidas protetoras específicas para cada caso, juntamente com a delegada. Pensar junto e construir. A Lei está muito boa. Mas precisa orçamento para colocá-la para funcionar.”
E o diálogo é a receita ideal, segundo Teles. “Nós sabemos que a grande maioria das mulheres não quer separar-se ou deixar seus maridos. Elas têm uma relação afetiva e querem ‘dar um recado’ a eles, uma ‘dura’, para que parem com os maus-tratos, não desejam que eles acabem na cadeia.”
A socióloga e professora Heleieth Saffioti concorda com essa afirmação, mas justamente por isso acredita que a Lei Maria da Penha não vai “pegar”: “É preciso reeducar homens e mulheres. Esta Lei criminalizou o fenômeno, por meio de seu enquadramento judicial”. Autora de inúmeros livros, entre eles Gênero, patriarcado e violência (Fundação Perseu Abramo), Saffioti lembra que, logo no início da implementação da Lei, ela participou de um debate em Mato Grosso do Sul, onde apresentou sua posição contrária ao texto. Ao final, uma delegada da região veio conversar com ela dizendo que discordava, mas que tinha se retirado da palestra para resolver exatamente uma situação que Saffioti havia previsto: uma mulher, que havia denunciado o marido horas antes, voltara à delegacia e tinha conseguido entrar na cela dele, onde o casal fez as pazes.
Saffioti acredita que o homem se torna mais violento quando privado das suas funções de socialização, ou seja, de seu papel na sociedade atual, que, segundo ela, é o de provedor. Por isso, os índices de desemprego estão diretamente associados à violência doméstica. “Não ter um salário, por exemplo, acaba com a masculinidade dele, tal como a conhecemos hoje”, argumenta. A saída? Uma ampla mudança cultural, que tire homens e mulheres dos lugares e papéis em que estão colocados.
Além disso, ressalta, “há a questão do poder, que é central”. Para ela, o possível crime contra Eliza Samudio não foi apenas um ato de sadismo ou de barbárie, mas sim de poder. Saffioti relembra o caso de Doca Street, que em 30 de dezembro de 1976 assassinou Ângela Diniz, então sua companheira e que pretendia deixá-lo. Ele deu quatro tiros no rosto dela, o que para Saffioti foi simbólico: “Era o que ela tinha de mais bonito”. No primeiro julgamento, Street foi absolvido, utilizando o argumento de “defesa da honra”, em que alegava ter sido traído por Ângela. Novamente julgado em 1981, foi condenado a 15 anos de prisão. Saffioti acredita que esse tipo de justificativa não é mais crível.
Mas, mesmo que a condenação se concretize, isso não é garantia de prisão, como demonstra o caso do jornalista Antônio Marcos Pimenta das Neves, assassino confesso da também jornalista Sandra Gomide. O crime ocorreu em agosto de 2000, e Neves permaneceu pouquíssimo tempo na cadeia desde então. Por conta do que é considerado como interpretação extremada da pre-sunção de inocência, o ex-jornalista segue em liberdade, aguardando a palavra final do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o caso.
Patriarcado
“O sistema patriarcal é de dominação. O homem sente-se dono da mulher, a vê como uma propriedade e acha que tem o direito de agredi-la, matá-la, puni-la severamente. Ele é cria-do para achar que é superior à mulher”, analisa a psicóloga Regina Navarro. “O crime pas-sional faz parte de uma mentalidade patriarcal. Embora existam mulheres que matam, a diferença é absurda em comparação com homens que matam suas mulheres”, completa.
“O homem fica passional porque, na cultura patriarcal, tem de romper muito cedo com a mãe, enquanto ainda necessita de seus cuidados. Para ser aceito no grupo, o menino tem de fingir não precisar da mãe. Se ele, com 7 anos, se machucar num playground e chorar, é chamado de ‘maricas’. O menino tem de provar que é macho o tempo todo. Assim, a cultura patriarcal também associa masculinidade a heterossexualidade.
Menino tem que ser forte, não pode chorar. Mas ele precisa da mãe. Então, ele desenvolve um comportamento em que, por defesa, nega a necessidade que tem dos cuidados maternos e desvaloriza a mulher em geral. Aí esse homem se torna um adulto, e quando entra numa relação estável é impressionante como ele baixa a guarda e se torna um bebê de novo. Vejo inúmeros casos desse tipo no meu consultório. Uma vez, uma mulher me relatou que tinha de dar comida na boca do marido. A dependência é tanta que, quando a mulher vai embora, aperta uma tecla dentro dele de desamparo e ele parte para a agressão, para a violência.
Esse é o caso da Mércia Nakashima”, afirma a psicóloga. Isso, somado ao sentimento de propriedade que o homem tem sobre a mulher, gera resultados desastrosos. “Junta a fragilidade do homem com a cultura patriarcal e com toda uma mentalidade de dominação, de ter que corresponder ao ideal masculino, e ele se sente ultrajado por não ser mais deseja-do pela mulher”, diz.
Essa opressão, que já duraria 5 mil anos, começa, porém, a cair: “A pílula foi o golpe fatal. Além disso, muitos homens estão sendo criados por feministas. Achou-se que a cultura patriarcal só oprimia as mulheres, mas agora eles perceberam que também são oprimidos. Os homens estão em crise, porque corresponder a esse ideal é desesperador”, acredita Navarro.
Para ela, “tem que haver a contribuição de todos para as mudanças de mentalidade. A mulher ganhar menos no trabalho, cumprindo a mesma função que o homem, deveria ser proibido por lei, por exemplo. Esse é o resquício dessa mentalidade patriarcal, atuando de forma injusta. Às vezes as pessoas não se dão conta. Os meios de comunicação também podem contribuir para isso, a depender das fontes que utilizam”.
Uma proposta interessante nesse sentido vem sendo desenvolvida pelas jornalistas argentinas Sandra Chaher e Sonia Santoro. Elas acreditam que a mídia tenha dificuldades em abordar questões vinculadas ao tema gênero, e propõem que todas as notícias sejam escritas a partir de uma perspectiva transversal, com preocupação sobre a exposição da mulher.
Em uma pesquisa que realizaram no país vizinho, denominada “Las palabras tienem sexo” (“As palavras têm sexo”), as jornalistas comprovaram que, na maior parte das notícias, as mulheres apareciam em seus papéis mais tradicionais, de mãe e esposa, ou meramente como celebridades e símbolos sexuais. “Se queremos fazer jornalismo a partir de uma perspectiva de gênero, temos que nos perguntar como cada fato relatado afeta homens e mulheres. Quais as diferenças e especificidades? É preciso encontrar uma maneira pela qual os editores comecem a se perguntar qual o impacto de cada questão na vida de homens e mulheres. Aí, sim, começaremos a alterar as coisas”, concluem.
Seja na mídia, seja no dia a dia, a mulher ainda não atingiu o mesmo patamar que o ho-mem na sociedade. Ela não é tratada com o mesmo respeito nem usufrui os mesmos direitos. E, talvez por isso, de acordo com dados da Fundação Perseu Abramo, cerca de 40 delas tenham sido espancadas enquanto você lia este artigo.
Mortes de mulheres no Brasil (a cada 100 mil habitantes)
1º Alto Alegre (RR) – 22,0
2º Silva Jardim (RJ) – 18,8
3º Tailândia (PA) – 17,8
4º Serra (ES) – 17,4
5º Jaguaré (ES) – 15,3
6º Monte Mor (SP) – 15,2
7º Macaé (RJ) – 15,2
8º Viana (ES) – 15,0
9º Amambai (MS) – 15,0
10º Rio Branco do Sul (PA) – 14,9
Fonte: Mapa da Violência no Brasil 2010, Instituto Zangari
Maíra Kubík Mano é jornalista e editora de Le Monde Diplomatique Brasil.
Mariana Fonseca é jornalista e editora-assistente de Le Monde Diplomatique Brasil.
**Nomes fictícios.
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