Desde o final de janeiro de 2011, o Iêmen vive uma revolta popular inédita. A diversidade sociológica dos manifestantes e o caráter pacífico da mobilização, apesar da repressão, evocam os eventos da Tunísia e do Egito. A revolução em curso, baseada em uma palavra de ordem simples, mas radical (queda do ditador, no poder desde 1978), rompe com a imagem violenta e conservadora do país.
Após três meses de manifestações no Iêmen, o medo de ver o país cair no caos paralisa a comunidade internacional. Preocupa também a oposição. No dia 21 de março, o ministro das Relações Exteriores da França, Alain Juppé, declarou que a saída do presidente Ali Abdallah Saleh era “inevitável”. Mas, assim como a mediação regional conduzida pelo Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), esse tipo de declaração não muda a situação: é a preservação do sistema que os aliados do Iêmen buscam. Mesmo que isso signifique a queda do presidente.
A situação se revela ainda mais paradoxal na medida em que, desde o atentado contra o navio de guerra norte-americano USS Cole em Aden, em 2000, o regime não para de provocar a insatisfação de seus aliados, sobretudo de Washington. Ao reprimir seus próprios cidadãos (como durante a guerra civil de Saada no Noroeste do país, que já fez mais de 10 mil mortos desde 2004)1 e instrumentalizar a luta contra a Al-Qaeda (sem no entanto chegar a conter os ataques da organização), o sistema político e institucional instaurado por Saleh mergulhou o país na violência.
Uma crise que vem de longe
Em 1990, a união da República Democrática e Popular do Iêmen (Iêmen do Sul) e da República Árabe do Iêmen (Iêmen do Norte) deu origem ao Estado do Iêmen. Contudo, no decorrer dos anos 2000, essa união foi revista tanto pelos rebeldes utistas,2 ao redor de Saada, como pelo “Movimento Sudista”. Além disso, desde 2007, os islamitas armados visam diretamente ao poder e às forças de segurança: a grave crise que atinge o regime do presidente Saleh não se iniciou em 2011.
As eleições legislativas previstas a princípio para abril de 2009 haviam sido adiadas em razão de bloqueios políticos e institucionais. Os partidos de oposição, reunidos no seio do Fórum Comum (Al-Liqa Al-Moushtarak), que compreende essencialmente os socialistas (que dirigiram a antiga república do Sul) e os Irmãos Muçulmanos de Al-Islah, há anos fazem uma crítica sem concessão ao regime e optaram por uma estratégia de boicote.
A despeito desses impasses políticos, o governo continuava, no final de 2010, a se beneficiar do apoio da comunidade internacional. Confiante no futuro, tentava colocar em votação no Parlamento uma lei que permitiria a Saleh se reeleger indefinidamente, enquanto seu filho, Ahmed Ali Saleh, militar de carreira, preparava-se para a sucessão.
O “despertar árabe”, iniciado na Tunísia e no Egito, inflamou os movimentos de protesto e precipitou a fragmentação das estruturas de controle do Estado. A juventude, muitas vezes independentemente dos partidos políticos, atiçou o fogo da revolta nas grandes cidades: Sanaa, Taez e Aden. Os partidos de oposição só aderiram às manifestações em um segundo momento, tentando manipular e enquadrar aqueles que se autoproclamavamshabab al-thawra(“jovens da revolução”).
Durante os meses de março e abril, as palavras de ordem – e as modalidades de protesto – convergiram em grande medida: militantes utistas, sudistas, membros dos partidos de oposição e da sociedade civil, lideranças tribais, islamitas e liberais se uniram para exigir a queda do regime, principalmente diante da Universidade de Sanaa, em um cruzamento batizado “Praça da Mudança”.3
Após o massacre de 52 manifestantes em Sanaa, no dia 18 de março, o regime se fragilizou em razão de inúmeras deserções: no seio do partido no poder (o Congresso Popular Geral) e também, de modo mais significativo ainda, no seio do governo, dos meios de comunicação e do exército. O general Ali Muhsin, ligado ao presidente e conhecido por sua proximidade com os islamitas radicais, apesar de desprezado pelos shabab, reuniu seus soldados para protegê-los, antes de deslocar suas tropas para a zona das manifestações pacíficas (i’tisan) em Sanaa. Essa adesão revelou fissuras internas no regime e deu nova dimensão a uma revolta não somente ameaçada de ser absorvida pelo regime, mas também de militarização. O apoio do general Muhsin reforçou as tensões entre os manifestantes: ele lembrava que a revolta poderia servir de trampolim para os rivais históricos de Saleh e ressaltava a fragilidade da opção pacífica, até então respeitada.
Mudando de tática, fingindo aceitar um acordo obtido no final de abril graças à mediação das monarquias do Golfo e depois negando-se a assiná-lo, Saleh não desmentiu a lenda de que é um excelente estrategista. Também demonstrou sua capacidade de mobilização maciça e evocou a dissimetria dos meios de que cada campo dispõe. Ao ganhar tempo, ele semeou a dúvida e o cansaço entre os manifestantes, e entre os jornalistas e observadores estrangeiros. Além disso, o presidente tentou tirar partido do desequilíbrio evidente entre a juventude mobilizada nas ruas e as elites dos partidos de oposição. Assim, a imunidade de Saleh e de seus próximos, garantida pelo acordo dos países do Golfo, foi aceita pelo Fórum Comum, mas rejeitada pelos shabab, excluídos das negociações. Estes mantiveram a desconfiança em relação às estratégias da coalizão, em particular de Hamid al-Ahmar (herdeiro de um poderoso clã tribal) e de seu partido Al-Islah, que dominavam progressivamente os espaços de mobilização.4
Os limites da libertação
O slogan Irhal (“Libertação”), pronunciado pelos manifestantes, não representa em absoluto um programa, e sem dúvida não possibilitará resolver de imediato todas as crises em que vive o país, principalmente em relação à questão identitária, levantada em 2007 pelo movimento separatista do antigo Iêmen do Sul. Não possibilitará também reparar as desigualdades sociais nem responder de maneira imediata aos problemas econômicos e ao esgotamento dos recursos naturais.
O desafio da segurança não pode ser evitado. O medo de ver grupos armados, particularmente a Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA), aproveitarem um vazio político e algumas conquistas da cooperação antiterrorista repensada após a derrota do clã de Saleh explicam o temor internacional. Desde o final de 2009, muitos bombardeios norte-americanos visando a AQPA contribuíram para solapar ainda mais a legitimidade do regime, afetando apenas superficialmente a capacidade de mobilização da organização. Na órbita desta emergem diferentes figuras capazes de assumir a liderança transnacional deixada vaga com o assassinato de Osama bin Laden. Entre elas, Anwar al-Awlaki, um norte-americano de origem iemenita. Menos de uma semana após a morte do chefe da Al-Qaeda no Paquistão, ele já era alvo de um bombardeio – malsucedido – de um avião não pilotado na região de Shabwa.
Por outro lado, a fragmentação do país representa um risco, pois as fontes de legitimidade (partidária, tribal, religiosa, de gerações etc.) e as frentes de oposição se multiplicaram nos últimos anos. Por trás da unidade de fachada nas ruas, é um movimento dividido que faz frente ao presidente Saleh. A competição entre o regime e a oposição, mas também no seio desta última e no interior do exército, poderia se revelar dispendiosa. A despeito das deserções de muitos militares e chefes tribais, o presidente mantém o controle sobre um amplo setor do exército e sobre muitos órgãos de segurança dirigidos por seus próximos. Disputas pontuais opuseram, em abril, a primeira divisão blindada dirigida por Ali Muhsin às forças leais ao presidente; um confronto direto poderia se revelar extremamente violento.
Os iemenitas estão bem conscientes do risco de escalada da violência. No entanto, um “equilíbrio do medo” se instaurou, limitando desde o início da contestação o nível de violência e de repressão, mas contribuindo para retardar a mudança, a ponto de torná-la incerta. Há quatro meses, multidões que apoiam o poder se reúnem todas as sextas-feiras em Sanaa, dando ao presidente a oportunidade de proclamar sua “legitimidade constitucional”. Essas contramobilizações, muito dependentes das redes clientelistas do regime, são entretanto uma pálida imagem se comparadas às mobilizações espontâneas, maciças e cotidianas dos opositores no conjunto do território, pois no centro das cidades, mas também (em menor escala) nos vilarejos, nas praças ditas “da mudança” ou “da liberdade”, os atores dessa revolução, os shabab à frente, alteraram as regras do jogo político. Os protestos se estruturaram progressivamente ao redor de espaços, de atores e de práticas que, embora inspirados em antigas e variadas experiências, distinguem-se por seu caráter inovador.
Foi assim que Tawakul Karman, uma militante dos direitos humanos no país, tornou-se um dos símbolos da revolução nascente. O surgimento de uma nova geração política, socializada pelo evento fundador da contestação iniciada no final de janeiro, vem acompanhado de uma transformação profunda da relação política e das lógicas da ação coletiva, e, de um modo mais amplo, de uma transformação da sociedade. Se aceitarmos que um processo revolucionário só é compreensível a longo prazo, essa experiência de protestos inédita convida a considerar o grande potencial político da revolta, capaz de atenuar muitas diferenças.
Manifestações pacíficas contínuas
As mobilizações iniciais, simples marchas e manifestações que ocorriam no período da manhã ou da noite, deram lugar a manifestações pacíficas contínuas. No dia 20 de fevereiro, algumas dezenas de pessoas decidiram montar suas barracas e passar sua primeira noite diante da Universidade de Sanaa. Esse exemplo foi seguido pelo resto do país, levando à ocupação progressiva de praças, ruas, depois de bairros inteiros, à medida que o número de “campistas” aumentava. Rapidamente, esses novos espaços eram organizados e dinamizados: vendedores ambulantes faziam ali seu comércio enquanto diversos comitês de organização se estruturavam.
Esse movimento favoreceu a diversificação dos repertórios da contestação: slogans, fotomontagens, cantos revolucionários, peças de teatro, poesia, exposições e ateliês artísticos, noites festivas e familiares ao redor da tribuna, além de jornais, sites e agrupamentos associativos, conferências e treinamentos para a desobediência civil.
De modo bastante inesperado, os milhares de membros das tribos que aderiram aos manifestantes depuseram suas armas e optaram pela luta pacífica. Essa nova estratégia de contestação veio desordenar as representações sociais e as práticas comumente associadas à tribo – muitas vezes reduzida ao conservadorismo, ao atraso e à violência – e substituiu a solidariedade que a caracteriza no centro do processo de mudança.
Simultaneamente, uma nova figura da juventude se desenvolveu, politizada mas não partidária, variada e autônoma. Nas praças, as cores da bandeira e a melodia do hino nacional se impuseram, em lugar dos símbolos sectários ou regionalistas das mobilizações anteriores. Isso levou muitos observadores e atores a se perguntar: a unidade do Iêmen, que muitos temeram que não ocorreria, não estava a ponto de se consolidar?5Em muitos aspectos, a circulação das mobilizações e da sincronização aparente dos diferentes movimentos de protesto reforça a ideia de uma convergência. As trocas e os encontros entre diferentes agrupamentos regionais chamavam a atenção para um reequilíbrio regional dos protestos e ressaltavam o papel-chave de Taez na promoção e na defesa do projeto unitário.
Quaisquer que sejam as apostas sobre o futuro, nada pode dissimular a força das aspirações e a extensão das transformações provocadas pela revolta popular que, nesse aspecto, já representa um sucesso que os próprios iemenitas deverão cultivar a fim de não desperdiçar a chance que ela representa.
Marwan Bishara é jornalista, autor de Palestine/Israel: la paix ou l'apartheid (Paris, La Découverte, 2002).
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