quarta-feira, 13 de julho de 2011

Jornalismo, direito humano


Ao lançar novo livro, um dos mais experientes jornalistas do país, debate as grandes reportagens e fala de uma outra censura — oculta e muito influente — que estabelece “o que deve e o que não deve ser publicado” na mídia tradicional
Por Paulo Hebmüller, no Jornal da USP

Os barões da imprensa nativa e seus furibundos editoriais contra supostas ameaças a uma suposta liberdade de imprensa que nos desculpem, mas é com uma autoridade conferida por mais de 50 anos de jornalismo exercido em algumas das redações mais importantes do país que o repórter José Hamilton Ribeiro afirma: não, não existe liberdade de imprensa.
Um dos repórteres que fizeram história na mítica Realidade, José Hamilton, cujo nome batiza até uma espécie de antúrio, 17 livros publicados, 5 Prêmios Esso, entre tantas outras premiações, falava dos três modelos de imprensa apontados pelo jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva no livro O adiantado da hora: o soviético, o francês de cooperativa e o norte-americano. O primeiro é característico das ditaduras, em que o jornalismo é uma atividade lateral do governo e os profissionais apenas se preocupam em publicar o material vindo dos palácios. O segundo, inspirado no francês Le Monde, é um modelo algooutsider, em que os jornalistas se organizam em cooperativas, seja para não ter patrões, seja para driblar a censura. Para José Hamilton, essa é uma alternativa que ainda não está solidificada e é de difícil manutenção.
Já o modelo norte-americano é o que vigora na maior parte das democracias regidas pela economia de mercado, como o Brasil: a imprensa é uma atividade privada que visa ao lucro. “Existe liberdade de imprensa em algum desses modelos? Eu digo: em nenhum”, assevera o repórter. Nesse último caso, a censura pode ser exercida pelos governos – de forma temporária, como numa situação de guerra, ou até com um controle permanente mais rígido –, mas o mais comum é que as próprias empresas tratem de estabelecer o que pode e o que não pode, o que deve e o que não deve ser publicado. “Isso leva em conta o interesse da empresa, as briguinhas que o patrão teve com outras empresas ou instituições, uma lista negra de pessoas que não devem ser citadas etc. Essa censura, surda e paralela, é permanente.”
As observações do velho repórter – na ativa às vésperas de completar 76 anos, rodando o país de norte a sul para produzir reportagens para o programa “Globo Rural”, da Rede Globo – foram feitas na última palestra do ciclo “Histórias que se contam: o jornalismo em grandes reportagens”, promovido entre os dias 7 e 9 de junho pela Jornalismo Junior, empresa ligada à Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Também participaram do evento os jornalistas Ricardo Kotscho, Edvaldo Pereira Lima, Sergio Vilas Boas e Sérgio Dávila.
O gosto da guerra – Bem-humorado e intercalando suas definições sobre a profissão com algumas das muitas histórias que colecionou ao longo da vida, José Hamilton brindou a plateia – formada quase que exclusivamente por estudantes de Jornalismo – inclusive com a “fórmula matemática” que criou para explicar como se produz uma grande reportagem. O enunciado é: GR = [(BC+BF)] x [(TxTn)]. Nele, “GR” é grande reportagem, gênero que não se confunde com a notícia de consumo rápido do dia a dia, e demanda profundidade, pesquisa e vivência.
“BC” é um bom começo, que fisgue o leitor e o convença a continuar lendo aquele texto, que disputa espaço com dezenas ou centenas de outras instigações num jornal ou revista, enquanto “BF” é um bom final, que deixe no leitor a sensação de “quero mais”. O primeiro “T” é de trabalho. “É preciso pôr todo o trabalho que você conseguir na sua disposição física e na sua força para reunir o melhor material possível”, define. Já o segundo é de talento – sem ele, “não há solução” –, elevado à potência necessária para que o trabalho se realize.
Às vezes a grande reportagem permite que seu autor a escreva em primeira pessoa e conte algo que se passou durante a execução do trabalho. O exemplo mais dramático dessa experiência na carreira e na vida de José Hamilton ocorreu na cobertura da Guerra do Vietnã para a Realidade, em 1968: no que estava programado para ser seu último dia no front, o repórter pisou numa mina terrestre ao acompanhar uma patrulha do exército americano numa aldeia ao longo da chamada “Estrada sem Alegria” e perdeu parte da perna esquerda. “Passei os 11 dias mais pavorosos da minha vida no hospital, um sofrimento terrível”, conta. A dor era minorada com morfina, mas ela causava enjoo e náuseas, em ciclos que se repetiam: dor, morfina, enjoo; dor, morfina, enjoo.
A história foi capa da edição de maio daquele ano e o jornalista virou notícia, retratada em fotos do free-lancer japonês Keisaburo Shimamoto, que o acompanhava. Foi Shima, como Hamilton o chamava, que convenceu o repórter a ficar um dia a mais no front porque ainda não tinha fotos “suficientemente dramáticas” para a capa – o acidente com o jornalista brasileiro acabou lhe dando o material que faltava. José Hamilton publicou um relato completo sobre a experiência e seu processo de recuperação no livro O gosto da guerra.
Em 1972, Shima foi convidado por Hamilton para trabalhar na própria Realidade. O fotógrafo japonês aceitou a proposta e disse que viria ao Brasil assim que terminasse um trabalho para uma revista no Vietnã. Não teve tempo: naquela missão, Shima morreu na explosão de um helicóptero atingido pelo Vietcong.
Produto caro – Ao final da palestra, José Hamilton autografou exemplares do livro Realidade re-vista, organizado por ele e por José Carlos Marão, seu companheiro naquela redação. Para o repórter, o fato de Realidade ter se tornado referência na imprensa brasileira e vir motivando a publicação de muitos trabalhos acadêmicos é fruto de circunstâncias históricas específicas: o governo militar já tinha dois anos, mas a censura e a pior face da ditadura ainda não haviam se manifestado, a sociedade estava na expectativa quanto aos desdobramentos do regime “e havia um vácuo de ideias no País”.
Nesse quadro, Realidade conseguiu traduzir para o leitor brasileiro o clima de efervescência política, cultural e social do planeta nos anos 60 e deu uma nova linguagem para a grande reportagem no país. A redação, apesar de jovem, era experiente, e havia forte ligação e afinidade entre seus componentes.
Ao mesmo tempo, a Editora Abril já era bem-sucedida com Quatro Rodas, criada em 1960, e outras revistas de quadrinhos e fotonovelas, mas ainda não possuía nenhuma publicação de jornalismo de interesse geral. Para entrar nesse campo, a editora não economizou recursos no financiamento do trabalho da redação. “Jornalismo é um produto caro. Bom jornalismo é um produto muito caro. E a grande reportagem, que é a coroação do grande jornalismo, é muitíssimo cara”, diz José Hamilton. “Nunca mais vi na imprensa brasileira se repetir esse fenômeno de uma grande empresa canalizar recursos abundantes para uma redação fazer grande reportagem.”
Na contraposição com o cenário atual do jornalismo brasileiro, o repórter não escondeu um certo desencanto: “Somos um país de Terceiro Mundo, onde a maioria da população não é capaz de entender um texto de dez linhas e a educação é um escândalo. A imprensa não poderia ser deslocada dessa realidade e de certa forma reflete isso”.
Mas em um aspecto José Hamilton ressaltou uma evolução sensível: na formação dos jornalistas. “Quando comecei, em 1955, na Folha de S. Paulo, os jornalistas eram recrutados entre o lúmpen, ou seja, boys, porteiros, faxineiros e pessoas que se empregavam a troco de um prato de comida. Eles viam como se trabalhava na redação, acabavam se ‘infiltrando’ e de repente se transformavam em repórteres de polícia, de esporte ou em fotógrafos”, conta. Em 1997, quando Hamilton escreveu um livro sobre os 60 anos de criação do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, ainda havia 19 jornalistas analfabetos inscritos na entidade. “Hoje não vai haver nenhum. Recrutar entre o pessoal de universidade, por pior que seja essa universidade, é muito diferente de recrutar entre o lúmpen. O profissional será muito melhor formado do que aquele coitado.”
Formação, vocação, paciência, persistência e sorte, além de disposição para transpirar muito, são características necessárias para o jornalista, defende Hamilton. “A pessoa que vai fazer jornalismo tem que ter consciência de que está entrando numa profissão muito competitiva e de mercado restrito e limitado”, diz.
Para o repórter, ler um texto de alta qualidade é um dos prazeres da vida – “embora não o primeiro nem o segundo, mas é um deles” – e por isso o jornalista deve perseguir essa qualidade, mesmo sem saber se vai alcançá-la.
“A trilha do jornalista é o aspecto humano”, ensina José Hamilton. “Seja o problema que for, é preciso ver como aquilo afeta as pessoas: quem são elas, qual é a sua dor e o seu sonho. A referência é sempre o humano.”

Realidade re-vista, de José Carlos Marão e José Hamilton Ribeiro, Realejo Livros, 432 páginas, R$ 70,00.

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