A combinação entre o velho mundo e o novo mundo é o desafio que Juan Luiz Cebrián enfrenta no grupo espanhol de comunicação Prisa, ao qual pertence o El País, considerado por alguns o melhor jornal do mundo. De 1976, ano em que fundou o jornal do qual passaria a ser diretor, até hoje, praticamente tudo mudou na forma de se fazer comunicação. A mudança do meio analógico para o digital pega Cebrián em um outro momento, em que não é mais simplesmente um jornalista e escritor, mas também um homem de negócios, presidente de todo o grupo.
Em uma manhã gelada de Porto Alegre, Cebrián recebeu o Somos Andando para uma conversa durante o café da manhã no hotel em que estava hospedado, em que falou sobre como um grupo tradicional de comunicação pode se adaptar às inovações tecnológicas que rompem com a hierarquia e a verticalidade, revolucionam a forma de se comunicar e colocam em xeque o papel do jornalista. “É verdade que a internet em princípio pode ser mais participativa, mais democrática, mais igualitária, mas a experiência mostra também que é fruto do tamanho do mercado, e é um mercado global”, ponderou.
Cebrián veio ao Rio Grande do Sul assinar um convênio com o governo do estado para a troca de conhecimentos e de conteúdos com a Fundação Piratini.
Somos Andando: A fundação do El País marcou um momento de muita mudança na Espanha. Mudança política, de sociedade, de uma ditadura para a democracia. Marcou também um momento de transformação no próprio jornalismo. E agora a gente vive uma mudança na comunicação. Qual é a relação dessa mudança na comunicação com a mudança que está acontecendo na sociedade?
Juan Luiz Cebrián: Essa é uma mudança mais complicada do que quando fundamos El País, porque nós sabíamos o que tínhamos que fazer, era só copiar os modelos de jornalismo internacional, copiar o New York Times, o Le Monde, o Times (de Londres), aplicar fórmulas que já se conheciam. Também descobrimos algumas coisas novas, porque se fez um jornal novo. Mas a diferença agora é que não há modelo, agora ninguém sabe o que tem que fazer. Os jovens, os que são nativos digitais, não leem jornais em papel, utilizam simplesmente o computador, os smartphones, os tablets, qualquer dispositivo desses. Nos Estados Unidos, a circulação dos jornais está baixando e, sobretudo, há uma queda acentuada da publicidade. Os jornais têm perdido muita rentabilidade. Uma grande parte deles tem registrado perdas. Sabemos que temos que migrar ao mundo digital, mas não há um modelo de negócios. Não há nenhuma experiência-êxito, que podemos usar como exemplo. Estamos imersos em um sistema de tentativa e erro. Portanto, é uma mudança mais fundamental que quando começou El País, e nós estamos fazendo a experiência, mas não sabemos se terá êxito.
SA: Como está sendo a experiência do El País?
JLC: Partimos de dois feitos concretos. Um que até agora nenhum jornal tradicional teve êxito na migração à sociedade digital. Nenhuma companhia de meios descobriu o modelo. As companhias mais fortes nesse meio digital são Google, Facebook, Flickr, Microsoft, Twitter, companhias novas feitas por gente mais nova, nascidas em dormitórios universitários, garagens e que não tinham nenhuma grande corporação por trás.
SA: Não são empresas de jornalismo, são empresas de comunicação…
JLC: Mas elas estão substituindo as empresas de jornalismo. Primeiro, estão levando toda a publicidade. Depois, estão levando os leitores. Mais da metade dos norte-americanos recebe as notícias primeiro através de Google News. Lá não trabalha nenhum jornalista, trabalham uns poucos engenheiros, que fazem mecanismos para agregar a informação dos jornais.
SA: É um agregador…
JLC: E hierarquiza as notícias. Ninguém lê toda a Google News, lê a primeira página. E sequer a hierarquia das notícias é feita por jornalistas, as máquinas a fazem. E aparecem primeiro as que mais se leem e se leem mais porque saem primeiro, é um círculo. Os jornalistas, neste entorno, hão de desaparecer. Os meios de comunicação são meios. Jornalista é alguém que conta histórias, que conta às pessoas o que acontece. E a rede é a desintermediação. Aquele a quem acontece algo o conta imediatamente, no Twitter. Portanto, o papel do jornalismo tradicional também está sendo transformado. Eu acredito que os jornalistas vão sobreviver, espero intensamente, mas vamos ter outro modelo. O jornal na rede não é somente um jornal, tem vídeos, sons, movimento, não tem hora de fechamento. Não sai pela manhã nem pelas tardes, sai a cada minuto. Um jornal é uma concepção fechada de mundo, em 48, 64 páginas. E quando se compra um jornal, não simplesmente se compra para lê-lo, às vezes se compra como uma bandeira, um ato de identificação ideológica, partidária ou de qualquer outro gênero. O jornal na rede é algo diferente. Se é que pode haver jornais na rede, pois falamos no conceito tradicional de jornal. O que estamos fazendo no El País é uma plataforma multimídia, onde podemos cruzar leitores e usuários, conteúdos e publicidade. E tem outro problema. Os valores de publicidade de um jornal tradicional são muito altos. Na internet, são muito baixos. Se não se ganha dinheiro, as empresas não terão como investir em capital humano. Haverá menos correspondentes internacionais, menos repórteres, menos editores. A nossa estratégia é primeiro nos dirigirmos a um mercado lingüístico grande, que é o mercado de fala espanhola. El País vende em papel 45 mil exemplares na América Latina todos os dias. Mas estamos fazendo o papel como maneira de promover a marca de forma global, para ser conhecida para que suba à rede. E estamos pensando em ampliar ao português, porque em São Paulo vendemos 400 exemplares em castelhano impressos em São Paulo diariamente.
No Huffington Post trabalham 35 jornalistas. No New York Times trabalham 800. O jornal mais influente na rede nos Estados Unidos não é o New York Times, é o Huffington Post. Então não há um modelo, porque Huffington Post, ou qualquer outro agregador, utiliza as notícias dos demais e não paga por elas. E só com 35 jornalistas se dedica a interpretar, a comentar, a analisar até o jornal mais influente. E o jornal mais influente nos EUA é o NYT.
SA: E como vai ficar o papel do jornalista com essa mudança? Ele não vai mais ser um intermediador…
JLC: Eu acredito que seja um problema geracional. Os jornalistas com menos de 30 anos não vão ter nenhum problema, porque vão viver num mundo em que foram educados. O jornal tradicional contou sempre a seus leitores o que queria o jornalista. De alguma maneira, nós decidíamos o que interessava aos leitores. Neste momento é ao contrário, são os leitores que nos dizem o que lhes interessa. Os jornalistas jovens que sejam nativos digitais eu creio que não terão nenhum problema, porque não necessitarão fazer esse câmbio cultural. Eu me criei sem televisão. Então minha cultura inicia-se em torno dos livros e das revistas. Mas meus irmãos menores e meus filhos desde os três anos estavam vendo a televisão. O que para mim era um feito excepcional e um câmbio cultural muito grande para eles era o habitual. Agora vai acontecer com a internet. E por isso não é casual que todas as companhias que triunfaram com a internet – Google, Yahoo, Flickr, Facebook, MySpace – fazem funções jornalísticas, não nos equivoquemos, só que não as funções jornalísticas que nós estamos acostumados a fazer. E todas foram criadas por gente de 21, 22 anos, sem dinheiro, em dormitórios universitários e garagens. Por isso é tão difícil para nós competir com isso, porque é um mundo que não compreendemos. Então, o que vai fazer o jornalista na rede? O nativo digital vai ter isso muito claro, que não pode ser um intermediador, porque a rede não aceita intermediários. A rede não é hierárquica, não é uma pirâmide. Os jornais são hierárquicos, há um diretor que diz o que tem que fazer.
SA: Quando o senhor diz que essas empresas também fazem determinado tipo de jornalismo… Não são jornalistas formados em jornalismo, mas é jornalismo, como é que funciona?
JLC: Às vezes não são nem pessoas, são máquinas. Google News é uma máquina, mas as notícias mais importantes para 60% dos americanos são as que dizem ali. Por exemplo, El País vende agora 400 mil exemplares em papel, pode ter 2 milhões de leitores no máximo. Na rede tem entre 25 e 30 milhões de usuários. Nós sabemos quantos compram o El País, mas dificilmente sabemos quem o compra e nunca o que fazem com El País, se o leem ou não, durante quanto tempo, o que leem, se estão de acordo. Na rede temos dez ou 15 vezes mais teóricos leitores. Podemos saber quanto tempo e o que leem, se concordam, se compartilham com outros. Posso saber se entrou por aqui [aponta o telefone] ou pelo computador, podemos saber tudo. Então os jornalistas começaremos a nos dirigir mais individualizadamente às pessoas. Mas à parte disso, o leitor estabelecerá um diálogo comigo, me ensinará, vai ser uma experiência compartilhada. Não vai ser eu explicando o mundo aos demais, mas eu tratando de compreender o mundo com o resto.
SA: O leitor deixa de ser só leitor, é um produtor de conteúdo, troca informações. Muda a relação do jornalista com a sociedade. De certa forma também muda o papel do jornalismo na sociedade. O jornalista deixa de ser um formador de opinião?
JLC: Não deixa de ser um formador de opinião, mas a opinião pública não se forma já nos jornais. Os políticos e os jornalistas acreditamos que sim, mas ela se forma em grande medida na rede neste momento. Como será o mundo sem jornais? No século XIX todo o transporte era feito com cavalos, a sociedade não imaginava que se pudesse viver sem cavalos. Os cavalos estão convertidos agora em um luxo. Igual ao mundo sem cavalos, pode haver um mundo sem jornais. Os jornais serão um luxo para um setor da sociedade.
SA: Continua fazendo sentido a faculdade de jornalismo, o diploma, neste contexto?
JLC: Nós no El País temos uma escola de jornalismo, um Master, ha 25 anos. E há 25 anos decidimos que neste curso de um ano poderiam ingressar todos os graduados, não importa em que carreira. Eu nunca acreditei no jornalismo como uma carreira de cinco anos, curricular, como a medicina. Para mim jornalismo é um ofício, uma profissão, mas não creio que seja uma ciência, uma disciplina acadêmica. Jornalismo pertence ao universo dos direitos políticos. Assim como ninguém necessita cinco anos em uma faculdade universitária para concorrer a eleições, ninguém deveria necessitar cinco anos para expressar o que quer ou o que sabe aos demais. Claro que faz falta, como na política, uma preparação. Qualquer um que queira ser jornalista tem direito a sê-lo, mas é importante que a sociedade forme-os bem. Isso nós pensávamos há 25 anos, agora com mais razão.
SA: E como fica a qualidade da informação? A gente tem agora um excesso de informações e menos hierarquia, menos verticalidade, como fica a qualidade?
JLC: O grande problema é que a qualidade se ressente também, primeiro porque na rede é muito difícil discernir o que é verdade e o que é mentira. Há blogueiros muito bons e blogueiros ruins. Mas todos parecem o mesmo: gente que sustenta notícias sem nenhum tipo de rigor, nenhum tipo de controle.
SA: Mas a credibilidade da informação de qualquer veículo também não pode ir sendo conquistada?
JLC: Estamos agora perdendo valores tradicionais. A privacidade, o rigor informativo, o direito à propriedade intelectual, que eram valores e questões básicas no mundo analógico. A credibilidade, que é o que define um jornal respeitável parece que não importa tanto na rede. Tenho a suspeita de que os jornais pertencem a um sistema institucional que se protege a si mesmo, e portanto exercemos um tipo de censura não-confessada na seleção das notícias, de maneira que os leitores não se sentem bem servidos e tendem a dar mais credibilidade àquilo que é clandestino, independente e que se produz de forma alternativa. A intimidade é um valor básico no exercício do jornalismo, e não interessa muito aos nativos digitais. Dão seus dados para compartilhar com os demais em troca de nada. E seus dados vão ser objeto de uma grande ação comercial ou política ou publicitária, não importa. Então, mudam muito os comportamentos.
SA: Como fica a relação de trabalho do jornalista? O que ele vai enfrentar no futuro, na relação de trabalho com a empresa, com o jornal?
JLC: Não sabemos bem como vai acontecer, mas vai ser uma relação menos hierárquica. O Huffington Post, jornal mais exitoso na rede neste momento, foi vendido à America OnLine por US$ 330 milhões. E teve um problema com os blogueiros, que dizem ter direito a uma parte desse dinheiro. Se amanhã vendermos El País, nenhum sindicato, nenhum jornalista diria “eu tenho direito a uma parte do prêmio”. São gente que cobra um salário e que tem uma relação salarial. O Huffington Post tem 35 jornalistas, e o New York Times tem 800. Quer dizer que se vai reduzir muito a mão-de-obra. Os próprios leitores fazem o papel de jornalistas. Mas eu sou otimista. Acredito que seguirá havendo jornalistas. O problema é que não sei como será.
SA: O senhor não acha que se democratiza a comunicação, se amplia a possibilidade de vozes na sociedade? Com o jornal impresso e os grandes meios, só pode fazer comunicação quem tem poder econômico.
JLC: Essa é a boa notícia. A realidade é um pouco mais complexa. Não há milhares de buscadores como o Google no mundo. O Google praticamente terminou com o Yahoo. Não há milhares de redes sociais como o Facebook. Ele terminou com o MySpace. Qualquer pessoa pode criar um jornal na rede – essa é a boa parte –, mas a realidade mostra que há uma grande concentração de poder. É verdade que a internet em princípio pode ser mais participativa, mais democrática, mais igualitária, mas a experiência mostra também que é fruto do tamanho do mercado, e é um mercado global. A tecnologia é propriedade exclusiva de uns poucos, que estão muito concentrados nos Estados Unidos. Ao final, há um monopólio mundial.
SA: Como o senhor avalia a qualidade do jornalismo no mundo hoje? Se possível no Brasil.
JLC: Há muitos tipos de jornalismo, não podemos pensar que o jornalismo está sempre composto por gente que faz informação política ou internacional ou econômica ou cultural. Portanto, não é que vai mudar o jornalismo, o que muda é o ecossistema total da comunicação. Como se garante a qualidade, o rigor? É um tema complicado, mas o que nós consideramos qualidade, rigor e credibilidade outros creem que é manipulação, serviço ao poder, integração ao establishment. O que é um jornalista? É um contador de histórias. Enquanto as pessoas necessitam alguém que lhes conte o que passa, haverá jornalistas. Como isso vai ter uma integração profissional e associativa, com habilidades concretas etc. e tal, é algo que se está por ver. O que o jornalista do futuro tem que fazer é tratar de ajudar as pessoas e dizer-lhes o que é bom e o que é mau da informação disponível. Agora, a informação está toda lá.
SA: Na medida em que os jornais são parte fundamental da democracia, da nossa democracia representativa, burguesa, quando muda o sistema de comunicação, a gente nota também mudança no nosso sistema político?
JLC: Já está acontecendo um tipo de democracia direta. Eu sou a favor da democracia representativa, mas por si mesma ela não resolve todos os problemas. Por que os jovens estão protestando agora? Porque não se sentem representados. Então, há algo que não funciona nessa democracia representativa. Há um establishment, que constitui um centro de poder, os sindicatos, os partidos políticos, os banqueiros e os meios de comunicação, que é um poder que se retroalimenta a si mesmo e que não atende às necessidades dos cidadãos. Outra pergunta que nos fazemos: governam os mercados ou governam os governos? É mais forte Wall Street do que a Casa Branca? Eu penso que não, são os governos que têm a capacidade de governar, mas não sabem como fazê-lo neste momento. Tudo isso vai se ordenar, mas vamos passar uma temporada um pouco complexa. E no jornalismo estamos começando. Não estamos ao final do processo, mas no princípio. O professor Philip Meyer disse que em 1943 terão desparecido os jornais. Na realidade o que ele diz é que não haverá gente que queira ler jornais. O sistema de informação e comunicação entre as pessoas haverá mudado por completo.
SA: Na medida em que se precisa de infraestrutura para levar banda larga para as pessoas, e são ou os governos ou os mercados que determinam aonde vai essa infraestrutura, isso não torna ou não mantém desigual a sociedade?JLC: Eu acho que internet é um empoderamento das pessoas. Mas é um mundo paradoxal, porque ao mesmo tempo favorece a concentração de poder, como vemos com as grandes companhias. No que se refere à estrutura política e social, todos havíamos nos organizado nos dois últimos séculos em torno do Estado-nação, que definia as regras e garantia a soberania dos países. Que soberania tem o governo grego na hora de determinar o poder aquisitivo de seus cidadãos? Nenhuma. Vai mudar a estrutura da representação política. E por isso é tão interessante a experiência de Porto Alegre. Porque trata de combinar a participação direta dos cidadãos com a representação política. O velho mundo com o novo mundo. Eu sou muito cético a respeito do novo mundo em muitas coisas, porque a democracia direta é um passo para toda a classe de populismo, de demagogia.
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