quarta-feira, 13 de julho de 2011

MÍDIA: Sanha da máquina sem memória




    Um relatório que alega confirmar o apoio do presidente da Venezuela Hugo Chávez às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) desencadeia uma ofensiva sem precedentes da grande mídia contra o líder da Revolução Bolivariana, apenas para, em seguida, cair no esquecimento. Eu não me engano: essa amnésia é seletiva
por Maximilién Arvelaiz
    Não costumo me envolver profundamente com o noticiário sobre a Venezuela: por obrigação política e profissional, tomo conhecimento do que é publicado no Brasil sobre meu país e busco corrigir ou refutar informações erradas ou descontextualizadas – o que infelizmente ainda é muito comum. Um processo, ainda que importante na disputa contra os adversários da Revolução Bolivariana, até protocolar. Mas admito que, com a divulgação no dia 10 de maio do relatório do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês) e a veiculação ostensiva que o documento ganhou na grande imprensa brasileira, me deixei levar. Por dois dias, acompanhei de perto a ofensiva mais agressiva contra o presidente Chávez neste pouco mais de um ano em que sou embaixador no Brasil. E, com a mesma perplexidade, vi a história desaparecer completamente dos holofotes, contada apenas pela metade.

    A divulgação do documento ocorreu no dia em que o presidente Chávez estaria no Brasil para o primeiro encontro oficial com a presidente Dilma Rousseff – a viagem foi cancelada por conta de uma lesão no joelho do venezuelano, que o forçou a tirar alguns dias de repouso. É difícil imaginar que tenha sido uma coincidência, especialmente pelo impacto da notícia: as versões on-line dos maiores veículos do país estamparam com destaque ao longo de todo o dia as afirmações do instituto inglês de que a Venezuela teria oferecido território, armamento e dinheiro à guerrilha colombiana. O mesmo no rádio e na TV. O assédio ao chanceler Nicolás Maduro, que cumpriu no Brasil a agenda de encontrar-se com o ministro Antonio Patriota, foi enorme. As dezenas de pedidos que havíamos recebido para uma entrevista com o presidente Chávez se multiplicaram em muitas outras solicitações por um pronunciamento das autoridades venezuelanas sobre o caso.

    Acompanhei a única entrevista que o chanceler venezuelano concedeu sobre o assunto no Brasil, ao Estado de S. Paulo. As perguntas que o jornal instruiu a repórter a fazer tinham algo de absurdo: o relatório havia conquistado, poucas horas após sua divulgação, uma legitimidade instantânea e irrefutável. Chegaram até a perguntar se o presidente teria cancelado sua visita ao Brasil em razão das acusações da ONG inglesa, ignorando o fato de que o presidente cancelara sua visita ao país no dia anterior. Tratava-se, portanto, de um interrogatório inútil, porque o acusado já havia sido declarado culpado, ainda que o Estadão tenha sido praticamente o único veículo a oferecer, com destaque, o posicionamento venezuelano sobre o assunto. Não por acaso, o comunicado oficial que enviamos às redações, assim como as manifestações da Embaixada em Londres e do próprio governo central foram ignorados ou transformados em sentenças de três palavras ao fim dos textos: “A Venezuela nega”.

    Em um caso específico, nem isso: um programa especial no canal fechado GloboNews completou o linchamento midiático. Em meia hora, com apenas três fontes consultadas – todas, obviamente, contrárias ao processo revolucionário venezuelano –, discorreram sem piedade sobre os terríveis crimes internacionais cometidos por meu país e meu presidente. Lembro-me de que a primeira coisa que veio à minha mente foi um questionamento: “Por que nos odeiam tanto?”. Confesso que tive problemas para dormir naquela noite. Estava estabelecido o clima de intriga internacional dos romances de espionagem dos anos 1950, e, naquela mesma noite, James Bond talvez já tivesse sido convocado pelo MI6 para uma missão em Caracas.

    A tal peça de ficção, porém, terminou ali, frustrando expectativas. O vilão foi reafirmado, bastando apenas aguardar o movimento dos mocinhos – que não veio, e não virá, já que esse relatório não passa disto: ficção. E o pseudojornalismo também simplesmente parou por aí. O processo natural de apuração, como a averiguação da veracidade das informações fornecidas pelo instituto, foi interrompido, deixando apenas as afirmações do IISS no ar. Nem mesmo o histórico do próprio instituto foi averiguado. Um erro grave o suficiente para que não tenha sido cometido por incompetência ou desatenção.

Argumento insustentável

    Vejamos: armado apenas de minha curiosidade e de meia dúzia de cliques no Google, levei não mais do que três minutos para encontrar, na página oficial da Interpol, a íntegra do relatório forense sobre os dados dos computadores das Farc utilizados para fundamentar o documento do IISS. Os computadores foram apreendidos em 2008, após um bombardeio ilegal do Exército colombiano em território do Equador contra um acampamento da guerrilha, e entregues dez dias depois à agência internacional para verificação. O relatório é claro em apontar que, nos três primeiros dias após a captura dos computadores, autoridades colombianas desrespeitaram os padrões de segurança ao lidar com os equipamentos, modificando e deletando arquivos. Por esse motivo, os dados dos laptops hoje não servem como evidência judicial. Curiosamente, o grande argumento do IISS para justificar a legitimidade de seu próprio relatório seria a garantia da Interpol de que os dados não foram alterados na Colômbia.

    Greg Grandin, professor de História da Universidade de Nova York, também buscou cobrir os buracos deixados pela apuração preguiçosa dos grandes meios de comunicação. Destaco, de artigo dele publicado no Guardian, as informações reunidas sobre o IISS: “Estão pedindo ao mundo que confie na palavra de ex-agentes de inteligência da administração Bush – que ajudam a coordenar as atividades do IISS – e suas contrapartes no Reino Unido, que incluem ex-conselheiros de Tony Blair e Margaret Thatcher”.

    O que vemos é a configuração do que, no Rio de Janeiro, é chamado de “milícias”: ex-integrantes de estruturas oficiais organizados em um grupo que é livre para fazer “justiça” com as próprias mãos. Se, nos órgãos estatais em que trabalharam, os gorilas da direita eram limitados pela política de Estado de seus países, em um think tankconservador estão livres para fazer o mal à vontade, com compromisso apenas com seus clientes. No caso do relatório anti-Chávez, a encomenda foi do ex-presidente colombiano Álvaro Uribe, que passou sua última semana como chefe de Estado obcecado com a Venezuela.

    É claro que hoje parece não haver plano de uma intervenção militar na Venezuela; mas, se assim parecer adequado às potências em qualquer momento no futuro, as bases para justificar a guerra já estão postas. A receita agora é a mesma que foi utilizada para justificar a invasão do Iraque – vale lembrar que esses cuja respeitabilidade é considerada irrefutável são os mesmos que, em 2003, proferiram a falácia do século: diziam que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa com capacidade para arrasar Londres em vinte minutos. Essa campanha conta, assim como há oito anos, com o entusiasmo da grande imprensa em divulgar e conferir credibilidade aos planos da direita raivosa e beligerante.

    Não é uma acusação vazia de minha parte. Permito-me romper um pouquinho o protocolo e relatar o conteúdo do contato que tivemos com a GloboNews logo após a exibição de seu programa especial anti-Chávez. Protestamos com os argumentos que já listei acima, em especial pelo fato de não termos sido procurados pela reportagem durante a produção do programa, para oferecermos ao menos nosso lado. A resposta que tivemos foi a de que a GloboNews havia, sim, solicitado informações à embaixada, por meio de um pedido de entrevista com o presidente Hugo Chávez. Um pedido que recebemos dias antes do lançamento do documento do IISS, quando ninguém tinha conhecimento das acusações que viriam.

     Como embaixador, tenho de me ater à razão e não supor, por essa resposta, que a direção de jornalismo da Globo já tivesse conhecimento prévio do conteúdo do relatório e da data cuidadosamente escolhida para divulgá-lo, e que já planejava, caso atendêssemos ao pedido de entrevista, colocar o presidente no olho do furacão. Fica claro, porém, o deliberado esforço para prejudicar a Venezuela por meio da desinformação e a intensa má-vontade em oferecer-nos abertura para equilibrar a campanha.


Maximilién Arvelaiz
é embaixador da República Bolivariana da Venezuela no Brasil.

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