Episódio em escola paulista chamou atenção após decisão judicial. Pessoas expostas a assédio moral sofrem de tristeza e pânico e até adoecem.
Por: Suzana Vier, Rede Brasil Atual
São Paulo – O convite para entrar na sala da direção não poderia ter sido mais hostil. “Entra, macaca”, ouviu a professora Neusa Marcondes de sua diretora. O fato ocorreu no dia 16 de março de 2009, precisamente às 20h. Foi pouco o tempo de exposição e preconceito racial, mas o impacto emocional perdura. “Eu parei, fiquei pasma. Foram segundos em que eu saí desse corpo físico”, lembra.
Militante do movimento negro e responsável por preparar aulas e materiais didáticos que tratam de preconceito e igualdade, Neusa tem como filosofia não discutir, apenas buscar seus direitos. “Eu ajo sempre assim, politicamente. Não entro em debate com a pessoa sem justa causa. Eu vou agir de acordo com o que é legal”, explica.
O caso foi julgado em julho deste ano e a diretora da escola municipal em que Neusa atua foi condenada a prestar serviços comunitários. A coordenadoria educacional da capital paulista também definiu sanções à diretora.
O problema, agora, é lidar, no dia a dia, com as recordações e a tristeza que o episódio acarreta. Ela não dorme bem e diz que sempre acorda assustada, às vezes lembrando do fatídico "entra, macaca", e do que sentiu naquele momento. "Aquela frase volta à mente, porque nada ofende mais a pessoa negra que a palavra 'macaco'.”
Tristeza e impotência
De acordo com a psicóloga Lídia Gallindo, especialista em assédio moral em instituições de ensino, é comum que pessoas expostas a esse tipo de situação desenvolvam um quadro psicológico de tristeza e pânico. “Elas ficam tristes, chorosas, deprimidas e com pânico”, descreve. “É um misto de decepção, tristeza e impotência.” Os sintomas têm origem psíquica, mas se estendem para organismo e, não raro, as vítimas de assédio moral adoecem.
No ambiente educacional, é mais comum ocorrer assédio de aluno com aluno – o bullying. No entanto, quando o assédio parte de um docente, a violência ganha maior amplitude. “Quando um professor em sala de aula agride um aluno, ofende, apelida e faz esse aluno passar por constrangimento, qualitativamente é muito mais doloso”, avalia Lídia.
Em se tratando de uma diretora de escola, da qual se “espera que tenha formação capaz de ajudar na formação de outras pessoas, é lamentável”, diz. “Mas não gosto de sair culpando pessoas. Parto do princípio de que ninguém quer ser ruim, fazer o outro sofrer. O problema vem muito antes. É preciso ter um diagnóstico sobre o que acontece com essa diretora ou qualquer outra pessoa que chama o outro por um apelido que desagrada”, pondera a psicóloga.
Para Neusa, mais de dois anos depois do assédio, ainda é incompreensível a naturalidade com que a diretora analisou seu próprio ato. “O que que tem falar que é macaca?”, ela conta ter ouvido da diretora. “Ela pode achar que não tem nada demais. Mas, para mim, mexeu com a minha humanidade, com o meu psicológico”, expressa.
Durante o processo judicial, a diretora teria justificado que chamou a colega de macaca, porque ela é muito ativa. “Eu era mesmo uma pessoa muito feliz, muito alegre. Mas eu deixei de ser alegre. Não tenho mais a felicidade de ir para o trabalho.”
Sem ação
Questionada sobre assédio moral na rede pública municipal, a assessoria de imprensa da Secretaria de Educação da capital paulista respondeu à reportagem que não realiza campanhas sistemáticas, “porque não é comum (ocorrer assédio moral) dentro da rede (municipal)”. Também não há diretrizes para os professores evitarem chamamentos estranhos ou rótulos a alunos. “Se se ensina aos alunos cidadania, não deveria ocorrer”, indicou o órgão.
Quando a secretaria recebe denúncias de assédio moral ou sexual, os envolvidos são investigados num “amplo processo de defesa, sem vícios”, prossegue a nota.
Sobre os professores readaptados, a assessoria diz que os profissionais podem escolher as escolas onde desejam trabalhar. Mas não entrou em detalhes sobre professor cujo trabalho é alterado por determinação da diretoria.
Chapinhas
Após a denúncia contra a diretora, a professora, que é readaptada, foi transferida, junto com outros professores na mesma condição, de suas atividades na coordenação pedagógica.
Ela passou a cuidar do registro patrimonial da escola. O novo trabalho é controlar os bens móveis da unidade de ensino, como cadeiras, mesas, ventiladores e computadores. E “colar chapinhas” com os números de registro.
Neusa foi readaptada inicialmente na área pedagógica devido a um problema de saúde que a impede de dar aula. “Eu fazia projetos, sondagens, buscava, pesquisava textos para professores. Por exemplo, o professor de história queria falar sobre mulher negra caribenha, eu procurava o texto”, explica. Neusa também era responsável por elaborar e atualizar o projeto pedagógico da escola. “Qualquer trabalho é digno, mas é que minha competência pedagógica continua. Mas, agora eu me acho inútil, com duas faculdades e o mestrado que comecei”, entristece-se.
O convívio na escola também não é fácil. Olhar os colegas depois do preconceito sofrido, do processo de investigação interno e judicial causa “uma situação muito constrangedora”. “Sinto-me isolada na escola”, lamenta.
Cuidados
A tristeza comum entre vítimas de assédio moral precisa ser acompanhada por especialistas, diz Lídia. “Assédio moral é uma violência. O tratamento vai buscar fortalecer a vítima, os familiares”, analisa.
Ela também sugere o encontro das duas pessoas, agressor e vítima, para falarem especificamente das emoções envolvidas. “O agressor às vezes não têm noção do quanto machuca.” Por último, os casos de assédio merecem ação judicial para se obter indenização e pedido de desculpa. “Em geral, o que mais conta é o reconhecimento do sofrimento”, testemunha.
Para além do tratamento da vítima de assédio moral, Lídia propõe uma nova abordagem sobre o problema. “É preciso levantar a bandeira dos espectadores”, alerta. Os casos de violência têm sempre três grandes personagens: a vítima, o agressor e os espectadores que podem ser vistos também como cúmplices. “O que acontece com os espectadores que não fazem nada, não reagem ao ver o outro apanhar?”, indaga.
Na opinião da especialista, é hora de fortalecer esse terceiro personagem das histórias de violência. “Mostrando a eles que é fantasia pensar 'não quero me meter nesse grupo, porque eu posso ser o próximo. Então vou me tornar inclusive amigo dos agressores'”, aborda.
A omissão pode acontecer por medo, hábito ou por achar que não deve fazer nada porque o problema é com outra pessoa. “É preciso mostrar que problema com um é problema de todos”, insiste. “Quando uma diretora chama a professora de macaca e ninguém contesta, todos estão concordando com aquilo.”
“Se isso hoje ainda acontece é por falta de conscientização e de um trabalho mais intenso de todos nós, pais, imprensa, legisladores, educadores na formação ética das pessoas. É preciso saber que somos todos iguais”, resume Lídia.
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