por Silvio Caccia Bava
Da praça Tahir, no Cairo; à Puerta del Sol, em Madri; ou a praça Syntagma, em Atenas; milhões de pessoas ocuparam as praças e as ruas em oposição à privação de seus direitos, o corte nas aposentadorias e salários, o desemprego, os aumentos de impostos, a privatização dos serviços públicos. O povo demonstra sua indignação com a política econômica de seus países, com a subserviência de seus governos e principais partidos políticos aos interesses do capital internacional, especialmente do seu setor financeiro. Eles não querem reformas, querem mudar o sistema.
O governo e os grandes partidos políticos, em todos esses países, representam ou estão capturados pelo setor financeiro internacional. Na verdade eles fazem parte desse setor financeiro internacional, são sua expressão política. E isso vem ficando cada vez mais claro desde 2008. A democracia ficou comprometida e opera-se uma ruptura de legitimidade do sistema político que já vinha sendo construída de longo tempo. Nem o governo, nem os principais partidos, são vistos como representantes do povo.
Na crise financeira de 2008, para salvar os bancos privados, os governos transferiram, globalmente, cerca de US$ 13 trilhões de recursos para eles. Dinheiro público, dinheiro dos contribuintes. Aqueles que não tinham o numerário necessário para socorrer esses bancos privados, contraíram dívidas para além de sua capacidade, pagam juros extraordinários para refinanciar essa dívida, e estão no seu limite, não podem pagar mais.
Tomemos o caso da Grécia hoje. Para refinanciar sua dívida ela teve que aceitar o primeiro pacote de políticas de ajuste imposto pelo FMI. A dívida contraída para salvar os bancos privados foi refinanciada pelas próprias instituições financeiras privadas da Alemanha, da França e da Inglaterra. Agora, antevendo o calote, esses bancos mais uma vez mobilizaram seus governos para pressionar a administração grega a aprofundar a espoliação. E se discute um novo pacote de medidas a ser encaminhado ao parlamento. Não há saída, o processo é de arrocho em arrocho. Não há futuro.
A Grécia vivia essa situação calada. Então, pouco mais de um mês atrás, os manifestantes espanhóis reunidos na Puerta del Sol lançaram uma convocatória na qual diziam: “Silêncio! Não vamos acordar os gregos!”. Talvez não seja por isso, mas os gregos acordaram. E passaram a ocupar a praça central de Atenas, acamparam lá e em muitos outros lugares públicos; o local se transformou no epicentro do movimento. Desde então, ocorrem debates todas as noites, assistidos por centenas de pessoas, jovens, idosos, homens e mulheres. Discute-se, entre outras coisas, a nacionalização dos bancos privados, o fim das heranças, um salário base para todos, empregados e desempregados. Desses encontros saem as palavras de ordem para as mobilizações, cada vez mais multitudinárias.
O que é que provoca essas multidões, em todos esses países, a saírem às ruas pacificamente, enfrentarem uma dura repressão, e mesmo assim continuarem, de forma corajosa e audaz, essa luta por democracia, justiça social e paz?
“Nossos sonhos não cabem em vossas urnas”, declaram ativistas na Tunísia. Por força das mobilizações sociais, a Tunísia terá suas primeiras eleições democráticas desde a independência, há 55 anos. Serão no próximo 24 de julho. É para eleger a Assembléia Constituinte que redigirá a nova Constituição. Se esse já é um avanço extraordinário, o que dizer da decisão segundo a qual as listas eleitorais terão de respeitar a paridade entre homens e mulheres, alternando desde o começo seus nomes entre os dois sexos?
A primeira geração, por assim dizer, desses importantes movimentos sociais que hoje desafiam os governos autoritários e neoliberais do Oriente Médio e da Europa foi a latino-americana. Pouco mais de dez anos atrás teve início na América Latina uma onda de movimentos sociais que, pacificamente e pela via do voto, desbancaram as tradicionais elites no governo e deram lugar a novas Constituições que ampliam direitos, novos governos de centro-esquerda, a inclusão de novos atores políticos na cena pública. Houve uma democratização da democracia vigente, com novos mecanismos de participação e de controle social.
Agora, a Primavera Árabe, logo seguida das mobilizações europeias, coloca novamente o cidadão comum no centro da arena política. Segundo as avaliações do Comitê Internacional do Fórum Social Mundial, estamos apenas no começo. Os movimentos sociais se globalizaram e sopram irresistíveis ventos de mudança, nos termos de Immanuel Wallerstein.
Mas esse mesmo autor nos alerta: “quando os ventos varrem os símbolos da tirania, não é certo o que virá a seguir. Quando os símbolos caem, todos, retrospectivamente, os denunciam. Mas todos querem também preservar os seus próprios interesses nas novas estruturas que emergem. Quem vai, então, deter o poder?”1
Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.
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