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Documentário entrevista
Sangue Latino
Porto Alegre - No dia 18 de abril de 2009, o presidente Hugo Chávez presenteou seu colega americano, Barack Obama, com o livro As Veias Abertas da América Latina,
clássico ensaio do escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano. O
exemplar estaria autografado pelo autor. O livro fala basicamente sobre o
saque dos recursos naturais sofrido pelo continente latino-americano do
século XV até o fim do século XX e é citado frequentemente por Chávez.
Tendo iniciado o dia 18 na 54.295ª posição entre os livros mais vendidos
da megavendedora de livros Amazon, o livro amanheceu o dia 19 em 2º
lugar. Atualmente, a avaliação dos leitores da Amazon demonstra uma
curiosidade. Dos163 leitores que escreveram resenhas a respeito da obra,
86 dão-lhe nota 5, a máxima, enquanto 50 dão-lhe a nota mínima, 1. Dos
163, somente 27 não lhe dão as notas extremas.
Tais avaliações não chegam a ser surpreendentes. Afinal, As Veias Abertas
não parece prestar-se a opiniões desapaixonadas. A direita costuma
chamá-lo de um “anacrônico clássico da literatura esquerdista do
continente”, o qual questiona o imperialismo americano e europeu na
região. Já a esquerda:
"Depois do golpe de 1973 não pude levar muita coisa comigo:
algumas roupas, fotos da família, um saquinho com barro do meu jardim e
dois livros: uma velha edição de Odes, de Pablo Neruda, e o livro de
capa amarela, As Veias Abertas da América Latina", conta Isabel Allende no prefácio da edição chilena.
Neste sábado (3), Galeano completa 71 anos, enquanto sua principal
obra — escrita anos antes, mas publicada em 1971 — completa 40.
Eduardo Galeano nasceu em Montevidéu em 3 de setembro de 1940.
Começou sua carreira de jornalista no início dos anos 60, como editor do
“Marcha”, um influente jornal semanal que tinha como colaboradores
Mario Benedetti, Mario Vargas Llosa, Manuel Maldonado e Denis Fernández
Retamar.
Durante o golpe de 27 de junho de 1973, Galeano foi preso e forçado a
deixar o Uruguai. Foi para a Argentina, onde fundou a revista cultural
“Crisis”. Em 1976, após seu livro As Veias Abertas da América Latina
ser censurado pelos governos militares de Uruguai, Argentina e Chile,
teve seu nome colocado na lista dos esquadrões da morte de Videla e,
temendo por sua vida, exilou-se na Espanha, onde deu início à trilogia
Memória do Fogo.
No início de 1985, retornou a Montevidéu. Em outubro do mesmo ano,
juntamente com Mario Benedetti, Hugo Alfaro e outros jornalistas e
escritores que haviam pertencido ao semanário “Marcha”, fundou o
semanário “Brecha”, no qual segue até hoje como membro do Conselho
Consultivo. Em 2010, Brecha instituiu o prêmio Memória do Fogo, entregue
anualmente a um artista a cujos talentos se somem à luta pelos direitos
humanos e sociais. O primeiro vencedor foi o cantor espanhol Joan
Manuel Serrat, que o recebeu a 16 de dezembro de 2010 no Teatro Solís em
Montevidéu.
Escritos que combinam ficção, jornalismo, análise política e história
Galeano tem mais de 30 livros publicados e, se pudéssemos
caracterizá-los através de uma frase, talvez desta devesse constar o
convite que o autor nos faz para olhar simultaneamente o passado e o
futuro. Suas obras também buscam estabelecer uma frente comum contra a
miséria moral e material do continente. Há um risco demagógico e piegas
neste tipo de proposta, mas Galeano salva-se disto com um texto limpo e
objetivo, às vezes duro. Com o tempo, amenizou seu estilo, chegando com
naturalidade à prosa poética e mesmo à poesia. Seu projeto de refletir o
drama da América Latina é abertamente de esquerda e, ao longo dos anos,
o autor manteve um compromisso contínuo com suas ideias, rejeitando uma
existência sem utopias.
Seus escritos combinam ficção, jornalismo, análise política e história. Ao lado de As Veias Abertas da América Latina, talvez seus livros mais importantes sejam a trilogia Memória do Fogo, dividida em Os Nascimentos (1982), As Caras e a Máscaras (1984) e O Século do Vento
(1986). Trata-se de uma ousada e inclassificável mistura de gêneros
unidas por onipresente espírito crítico. Os personagens são generais,
artistas, revolucionários e operários, os quais são retratados em
pequenos episódios que começam nos mitos dos povos pré-colombianos
chegando até a década de 80 do século XX.
Como fã de futebol e hincha do Nacional de Montevidéu, Galeano escreveu O futebol ao sol e à sombra
(1995), onde revisa a história do esporte. Sua paixão pelo jogo supera a
paixão por uma camisa. O autor traça comparações com o teatro e a
guerra, critica a presença das grandes corporações, de um lado, e, por
outro, ataca sem tréguas os intelectuais de esquerda que rejeitam o jogo
por motivos ideológicos. O formato escolhido é o da crônica, mas uma
crônica de poesia derramada de paixão pelo futebol. “Aos descendentes
dos rituais astecas, aos filhos do tango, do samba e da capoeira, da
sombra da miséria e do sol dos sonhos de glória”: é a estes, a sua
tradição de virtuosismo e a seus cultores, em todo o mundo e ao longo
dos tempos, que o autor presta homenagem. Mas…
"Como todos os meninos uruguaios, eu também quis ser jogador de
futebol. Jogava muito bem, era uma maravilha, mas só de noite, enquanto
dormia: de dia era o pior perna-de-pau que já passou pelos campos do meu
país (…) Os anos se passaram, e com o tempo acabei assumindo minha
identidade: não passo de um mendigo do bom futebol. Ando pelo mundo de
chapéu na mão, e nos estádios suplico:
– Uma linda jogada, pelo amor de Deus!
E quando acontece o bom futebol, agradeço o milagre — sem me importar com o clube ou o país que o oferece."
No ano passado, a L&PM lançou uma nova tradução de As Veias
Abertas da América Latina. O tradutor, a pedido do próprio autor, foi
Sergio Faraco. “Fiz a tradução a pedido de Galeano e acompanhado por
ele. Enviava diariamente e-mails com minhas dúvidas, os quais eram
respondidos imediatamente. Demorei 3 meses para terminar as quase 400
páginas. A maior dificuldade não foi o texto original, foi a comparação
com a outra tradução brasileira, de Galeno de Freitas, muito boa, feita
em 1971. Era inevitável, acho que tudo ficou muito parecido”, conta
Faraco.
Galeano elogiou a nova tradução, que teria ficado superior ao
original em espanhol. “Minha obra hoje soa melhor em português”, disse,
referindo-se ao fato de ter não apenas Faraco como tradutor de sua obra,
mas também Eric Nepomuceno. Só aqui no Brasil já saíram 52 edições do
livro. Faraco completa: “As Veias Abertas é um ensaio com altíssimo grau
de informação. É inacreditável que ele tenha feito aquela imensa
pesquisa histórica e escrito o livro na idade de aproximadamente 30
anos. O livro retrata uma realidade vergonhosa de surpreendente
atualidade em nossos dias, pois nossa miséria e dependência permanecem. É
curioso que alguns chamam o livro de anacrônico. Apesar de ter sido
escrito há 40 anos, ele não tem nada de anacrônico, até porque revela de
forma brilhante uma realidade incontestável – a realidade histórica”.
O professor do Instituto de Biociências da UFRGS, Paulo Brack, em
entrevista à Rádio da UFRGS, rebate enfaticamente as acusações de
anacronismo. “Vejam, por exemplo, a questão de Belo Monte. Ela
confrontou o Brasil e a Comissão de Direitos Humanos da OEA, que
questionou o tratamento que o governo brasileiro está dando ao problema.
Também a aprovação do novo Código Florestal na Câmara demonstra a
vitória de um sistema que há séculos está enraizado no país. O Código
Florestal anterior era uma das legislações mais avançadas do mundo.
Agora foi alterada em favor do agronegócio, cujo sistema de produção
teve origem nos grandes latifúndios. Ou seja, muita coisa que Galeano
fala em seu livro está ainda atual. Apenas mudou a cara de quem faz.
Antes, havia a presença militar, agora não mais”.
Em As Veias Abertas, Galeano apresenta uma análise histórica
sobre formação da América Latina desde sua ocupação pelos europeus até
os dias de hoje, fundando sua crítica na espoliação econômica, na
dilapidação dos recursos naturais do continente e na dominação política,
primeiro pela Europa e depois pelos Estados Unidos. A professora de
Geografia Ilana Freitas faz uma curiosa constatação. “Durante a
ditadura, As Veias Abertas era muito usado por professores de
segundo grau de História e Geografia. Eram pessoas que, de forma muito
corajosa, preocupavam-se em marcar uma posição de esquerda ou de crítica
à ditadura”.
Sem ser hostil, o jornalista e escritor Juremir Machado da Silva,
também em entrevista à Rádio da UFRGS, faz ressalvas ao livro. “Galeano
defendia que o fim da dependência da América Latina deveria ser baseado
na implantação de modos modos de produção. O livro indica que a solução
para a dependência latino-americana seria o socialismo. Este aspecto
implícito ou explícito do livro, caducou”. Porém, Juremir concorda com
Galeano no cerne: “É claro que o Brasil é um vendedor de commodities. Ou
seja, vende matéria-prima barata e compra de volta o produto pronto
daqueles países que agregam valor a eles. Vende para recomprar a preço
maior o produto beneficiado. É uma questão não só de tecnologia, de
capital, mas de mentalidade. Hoje, nada nos impede de mudar esta
situação, só o fato de existir uma elite que está satisfeita como
vendedora de commodities e que não deseja outro tipo de organização
sócio-econômica”.
Atualmente, passados 40 anos, talvez a crítica que se possa fazer a
Galeano seja a do tom indignado da narrativa, porém isto não anula ou
diminui os fatos descritos e não retifica a história, pois é difícil
negar que as colônias e nações latino-americanas têm sido, desde o
início do século XVI, especialistas em prover o desenvolvimento das
economias europeia e norte-americana, com seu consequente fortalecimento
político.
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